quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Amor lésbico



Quando lhe perguntei como estava, respondeu-me com o olhar. E o olhar era todo (m)ágoa. Escondeu-o entre os dedos. Refugiou-se, assim, da inquisitiva demanda presente nos meus. E nunca tive uma resposta.
Atirei-me no penhasco que era o seu corpo. Acreditando que, num abraço apertado, podia impedir as feridas de jorrar desalento ou reajustar as quebras, unindo as fissuras numa só pele. E ela afastou o abraço, com medo da unidade. Porque se cansava das supostas normalidades e da maneira como elas se sobrepunham aos sentidos.
A sociedade não estava pronta. Explicou. A sociedade não entendia que ela amava outra ela. E que essa ela a amava. E que bastaria o silêncio. O olhar para outro lado. Ninguém queria bandeiras. Ninguém queria palavras de incentivo. Só paz. Sossego. Espaço para poder ser. Para poder ter. Amor. A sociedade não estava pronta. Ela estava. Para combater a sociedade e o que viesse a seguir. Mas ela dependia de outra ela. E essa não estava. Pronta. Preparada. Para lutar.
Disse-me também que eu não entendia. Porque o amava a ele. E nunca tínhamos vivido sob o escrutínio dolorosamente impresso nas ruas, numa homofobia calcetada no chão de pedra, onde se insistia em intercalar pedras azuis e brancas.
Então, eu limpei o rosto dela. E disse. Que entendia. De coração. Acrescentei. Mais. Também eu amei uma mulher. Foi o meu primeiro amor.
Espantou-se. Nunca me vira senão com ele. Nunca parara para pensar nisto. E eu expliquei.
Ainda eu não tinha nascido e já amava uma mulher. E ela, mais liberal do que tudo e do que todos, amara igualmente este ser, ainda sem género nem identidade, antes mesmo de saber quem eu era ou se eu era alguém. De mim, pouco importava quem fosse: se homem ou mulher; proclamadora de fés ou psicopata; sábia ou com dificuldades de aprendizagem. Essa mulher, que eu comecei a amar antes de ter uma forma, amou-me independentemente de quem eu pudesse vir a ser.
Dentro dela, construí amor. Juntamente com as pernas e os braços. E os órgãos sexuais que me determinaram menina, quando ainda não sabiam quem eu era por dentro. E esta mulher, que se agradou do meu sexo, não fez nele ideologias sobre a minha sexualidade nem pautou nele as minhas formas de ação.
De mim, tolerou as dores que lhe dava e os mimos sob a forma de batimento de asa. Conhecia-me mal, posto que nunca me vira. Esse mal era já melhor do que o conhecimento em soma de todos os que se cruzaram até hoje comigo.
Eu amei uma mulher. Ainda a amo. E ela a mim. É um amor que não escreve romances, bem sei. Mas é amor. E não há tal coisa como um amor genderizado e feito a preceito nas normas do que encaixa ou não no momento dos corpos dados.
A sociedade é voz. E a voz é música. E as pessoas detestam o silêncio. Mas ela não merece a (m)água dos teus olhos.
E já não era. (M)água. Nos seus olhos. Era agora brilho.
Todas nós o tivemos. Esse amor lésbico. Gostamos de pensar que ele é diferente. Porque não é sexual. Nem sexista. Nem algo que se traga ao pensamento quando a paixão queima.
Mas é amor. Amor é amor. E quem somos nós – as filhas de alguém – para julgar o amor entre duas mulheres?
Eu amei uma mulher. Ainda a amo. Vou amá-la para sempre. Mesmo quando me deitar com ele. Mesmo quando disser que o amo. E entendo, sim. O amor dela. Não porque entendo que ela ama outra ela. Mas porque entendo que o amor tem muitas formas… e nenhuma delas é um erro.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet


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