quarta-feira, 14 de junho de 2017

Cegueira



Passei por muita gente na vida. Alguns, passei-lhes pelas mãos. Outros pelos olhos. Passei quase sempre indiferente e invisível. Como um espetro numa dimensão alheia. Nas ruas somos todos pontos cardinais, devotados a ir do ponto A ao ponto B. Pelo caminho há montras e carros e pessoas. Pessoas que são carne e vida. Mas tratamos de as ignorar. Como aos carros e às montras. Elas passam. Como eu passei. Às vezes pelas mãos. Às vezes pelos olhos. Mas sempre com uma indiferença que pauta a distância entre um nós muito concreto e um outro que nunca se materializa além de um etéreo ideológico e cheio de transparências.
Passei por muita gente na vida. Alguns riam. Alguns choravam. Não lhes vi o riso nem as lágrimas. Talvez porque semicerrasse os olhos rindo. Talvez porque os toldasse chorando. Nas ruas, era mais um mono com duas pernas que podiam ser motor. Mais uma modelo envergando o tecido da vergonha sobre a pele nua. E, à medida que avançamos, todos nus e decadentes, é nas roupas que, volta em vez, focamos o olhar. Como se as roupas escondessem a verdade: estamos todos sozinhos num mundo que é sala de espera. Numa sala de espera que é linha de comboio e que leva apenas à morte. Mas nós ignoramos a morte. Como ignoramos as pessoas. Centramo-nos em nós. E só.
Passei por muita gente na vida. Alguns prostituíam-se. Alguns pregavam a palavra do Senhor. Passei por eles e não os vi. Foi sempre igual que me aliciassem para os prazeres da carne ou para os do divino. Nunca quis deles nada que não a distância. Do ponto A para o ponto B. Com milhares de ecos pelo meio, que não ouvi nem quis ouvir. Pedaços de poluição sonora que ora vinham das buzinas, ora das obras, ora das bocas. Era tudo igual. Um oceano feito de sons que se enterram nas vielas e não me perseguem. Que não me travam os passos. Nas ruas cheias, onde não há coisa nenhuma.
Passei por muita gente na vida. Alguns faziam banquetes. Alguns passavam fome. Questiono à frente de quantos passei, correndo para saciar a gula. Questiono à frente de quantos passei comendo os mais deliciosos petiscos. Não os notei. E eles não me notaram a mim. Porque o mundo é uma bola povoada por um só. Não há visão que abranja além de do ego. E, quem fala de amor, sabe-o melhor do que ninguém. Amamos aqueles que se ligam a nós, porque nos estendem. É difícil amar quem não nos diz. Porque está longe, ainda que esteja perto. Porque é inconcreto, invisível, ilusório.
Questiono muitas vezes: por quanta mágoa passei, sem a notar? Por quantas lágrimas passei, sem tentar limpá-las? Por quanta fome passei, sem a saciar? Por quanta pobreza passei, sem ajudar? Por quantas pessoas passei sem as ver?
É o pior tipo de cegueira. Somos todos culpados. E abrir os olhos seria morrer. Tornar mais concreta a dor. Fazer parte dela. Parar algures, entre o ponto A e o ponto B. Ser gente. Fazer a diferença. Fazer sentido. Ter um propósito. Estar na estação à espera. Não do comboio que leva à morte. Mas das pessoas. E embarcar com elas. Não pelo destino. Mas pela viagem. 

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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