quarta-feira, 31 de maio de 2017

E se



Fica – a incerteza. Prende-me ao chão. Sela-me os passos com ambiguidades. E elas parecem gelo. Ferro. Pregam-me à pedra. E dizem – fica – não querem que vá?
Fundo-me com o gesso. Das paredes. E com a cera. Das velas. E com o aroma florido. Do ar. Não sou primavera. E é aterrador. O som do vento. O cheiro das rosas. Peço, imploro. Em silêncio. Com medo que ouçam. Não! Não quero ir. Há um Universo pardacento de ses no caminho. Como espinhos. Como maldições. Estou descalça e tenho os pés presos ao chão. Não quero ir.
Vêm as vozes. Sempre cantadas. Num eco. E se. E se. E se. Abano a cabeça. Agarro-me a mim própria. Um abraço de dedos inusitados, cujas unhas furam as carnes meio flácidas dos braços, à procura do conforto. É um terror que não se explica. Que alastra. Perdura. Lamenta o invisível que vem depois.
E as vozes – Tenta. Podes falhar. Podes cair. Mas tenta. – Vou cair. Sei-o. Mas elas não. – As quedas não te põem só mais perto do chão. Também te põe mais perto do objetivo. – Talvez. Mas custa ir. Não sei o que vem. Não sei o que está. E se não chega? E se. E se E se.
Um mundo feito de dúvidas, lá à frente. E uma morte tão certa aqui. As questões que se levantam. E que não se respondem sozinhas. Nem acompanhadas. Nem de outra forma qualquer. Lançam-se cartas de vento sobre a minha mesa de terra. E fluo na sua direção. Tento encontrar calor nas suas revelações. Etéreas. Incertas. Ninguém sabe o amanhã. Ninguém sabe se amanhã o eco não se repete. E se. E se. E se.
Sinto o flagelo da dúvida a aguçar-me as feridas. E há demasiado passado no meu presente. Demasiado pouco presente na construção do futuro. E as vozes. – Tenta! – Talvez. Mas e se?
Mostram-me os pés. Pregados ao chão. E eles sangram. Tanto ou mais do que sangrariam num caminho de espinhos. Mostram-me as marcas das unhas na pele. – Não são abraços. – São ambiguidades. E mostram-me a dúvida. Que me prende a ferro e me confina ao espaço onde a morte é destino certo.
Rebento com o chão e com a parede. Num grito. E embate contra mim a pedra. Embate contra mim o fogo. Embate contra mim a vontade de ir. À procura do futuro. E do destino dos “e se”, seja ele qual for.
Vou. E se? Bem. Se eu tentar – é assustador – poderei encontrar a falha que me fará cair no mais fundo dos abismos. Mas se não tentar – esse é o pior destino – serei eternamente escrava da dúvida.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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#segredosdeummonstro  

terça-feira, 23 de maio de 2017

Nas redes sociais



Olá. Esta sou eu. Eu e a minha vida perfeita. Com a minha casa perfeitamente organizada. E o sorriso sempre no rosto. Uso sempre maquilhagem. Diria mesmo que acordo assim. Com lábios ora rubros, ora rosa, sempre perfeitamente delineados, com cuidado e devoção. Tenho a relação perfeita. Com o homem perfeito. E, claro, ponho sempre sobre a mesa as maiores, melhores e mais saudáveis iguarias do mundo. Olá. Esta sou eu. Bem-vindo ao mundo das redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Tenho centenas de amigos, com os quais partilho uma vida ativamente devotada à diversão. Juntos somos um clã empreendedor e criamos as melhores coisas. Temos dias dedicados à cerveja e dias dedicados à filantropia. Somos tudo aquilo que quem não é quer ser e muito mais. Somos sorrisos que se juntam e se exibem. E arte que se faz e publica. Vamos a todo o lado. Somos sempre os convidados de honra. E cada vitória tem a maciez da promessa. Amanhã há mais. Procurem nas redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Adotei três gatas, ao longo dos anos. E todas são pequenos pedaços de paraíso. Dormem sossegadamente. Fazem expressões engraçadas. Perseguem as imagens da televisão e caçam peluches. Há fotos e vídeos. Confirmem. Elas são verdadeiras estrelas em ascensão no mundo digital. Elas são perfeitas. Nunca fazem nada que não devam. Podem conferir. Está estampado nas redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Eu e a minha vida perfeita.
Bem-vindo ao mundo das redes sociais.
Olá. Esta sou eu. A minha vida não é perfeita. Tenho três trabalhos e nem sempre consigo geri-los. Muito menos consigo geri-los e ter a casa organizada. Sorrio muito. E choro muito também. Sou menina de choro fácil. Quando estou triste, quando estou cansada, quando me irrito. Choro. E isso limpa muitas vezes a maquilhagem que insisto em pôr no rosto, por nem sempre conseguir lidar com a cara lavada onde se imprimem olheiras e sardas de verão. Tenho uma relação com o homem dos meus sonhos. O meu melhor amigo. E, com ele, vivo dias melhores e dias piores, como toda a gente. Às vezes não conseguimos parar de nos abraçar. Às vezes não conseguimos parar de discutir. E não! Na minha mesa não há só iguarias de aspeto invejável. Também erro receitas. Também parto bolos ao desenformá-los. Também cedo ao desejo de comprar pizas congeladas para o jantar. Olá. Esta sou eu. Além do que se vê nas redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Que consiga contar agora, de repente, (e se não contarmos com a minha mãe e o meu companheiro), tenho menos amigos do que dedos das mãos. Raramente estou com os que tenho. Sou bicho-do-mato. Odeio cerveja. A minha última boa ação deve ter sido comprar alguma coisa mínima para o banco alimentar. E não o fiz com os meus amigos. Fiz sozinha e a correr. Não duvido que algumas pessoas quisessem ser eu. Mas duvido muito que a troca lhes fosse favorável ou que as animasse. As vitórias têm um preço hoje. E outro amanhã. Um que não está nas redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Tenho três gatas. Amo-as de paixão. Apesar do pêlo que não pára de cair, dos cabos que não param de roer, da comida que roubam sempre que não a ponho a descongelar dentro do forno. Uma delas tem tendências violentas e não a posso juntar com as outras. Outra, por trauma ou teimosia, só vai ao caixote uma vez por festa. Outra obriga-me a mudar tudo para um patamar elevado para não ter cacos para varrer a cada dois segundos. Todos os dias a ginástica das portas fechadas para evitar que se matem drena a energia vital. E tratá-las em separado obriga-me a levantar mais cedo. E sim! São adoráveis, à parte disso. E também dormem. E também fazem expressões engraçadas. Mas não são sempre fáceis. Nem na maioria das vezes. Mas não se vê nas redes sociais.
A imperfeição contorna-se nos limites da moldura da foto. Eu e a minha maquilhagem e a minha refeição somos perfeitas. A minha vida social é perfeita. As minhas gatas são perfeitas. Vivemos nesse universo que cabe perfeitamente nas mãos de quem segura o telemóvel ou o computador. Perfeitos. Bem-vindo ao mundo das redes sociais.
Olá. Esta sou eu. Eu e a minha vida perfeita. Nas redes sociais.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 16 de maio de 2017

Opinião



Troca por troca. A minha opinião pela tua. A tua pela de alguém. Vice-versa. Troca o passo. Roda e bate palminhas. Opinião. A minha. A tua. A dele. A nossa. Façamos silêncio. Concordamos. Tu e eu. Tu e ele. Ele e alguém de quem eu discordo. Mas é só a minha opinião. E a tua. E a dele. Temos algo em comum.
A vulgarização do amor e do sexo não é nada demais quando comparada à vulgarização da opinião. Diria mesmo que o negócio mais falho do mundo é o do mercado de opiniões. Há quem pague o amor. Há quem pague o sexo. São mercados que vendem, nas ruas e no cinema, muito mais do que alimento. Mas ninguém compra opiniões. Porque toda a gente as dá. São mais vulgares do que o ar. E mais comuns do que a água potável ou não. São tão drasticamente cedidas que existe quem opine sobre a opinião feita sobre outra opinião qualquer. Toda a gente a dá e toda a gente a tem. Convenientemente há quem tenha mais do que uma. Sobre a mesma temática. Depende da opinião alheia.
Dá-se. Por aí. Gratuitamente e sem ninguém pedir. É muito mais do que uma prostituição mental. Porque se fosse prostituição valia alguma coisa. E não vale. Porque não é mais do que uma oferta cedida sem razão aparente. Uma espécie de conhecimento mas sem conteúdo. Uma espécie de malícia mas sem efeito. Uma espécie de espaço vazio mas onde não cabe nada.
Opinião. Construída sem peças. Ou com meias peças. Mas quase sempre sem que a peças. Porque quando se pede. Ai, quando se pede ninguém sabe. Ninguém viu. Ninguém tem. E faz o que quiseres, por favor, que não quero ser culpado dos teus infortúnios. Mas se não pedes. Deuses. Opiniões. Como gotas de chuva. Na maior das tempestades. Dilúvios de cloaca. Caídos dos céus da boca de alguém que sabe globalmente sobre todas as temáticas. Divinamente.
Mesmo quem nunca viu e não sabe. Ouviu dizer. Acha que. Qualquer terminação. Não importa. Porque é mais vergonhoso não ter opinião do que não ter razão. Porque é mais vergonhoso não ter opinião do que não ter vergonha. Pior mesmo é ter opinião e não querer dá-la. Porque a palavra é precisa e o mundo pode desalinhar no silêncio.
Troca por troca. A minha opinião pela tua. A tua pela de alguém. Vice-versa. Troca o passo. Roda e bate palminhas. Temos opinião. Devemos ser gente. Mas há quem seja da opinião que não somos. E quem tenha a opinião que essa opinião é parva. E quem tenha a opinião de que opinião não deve existir.
Existe. É o mercado mais falho de todos os tempos. Excepto para quem integra os mercados onde a opinião se difunde para criar opiniões. Aí chega-se a uma qualquer presidência opinativa e pode-se avançar para a apanha da roupa alheia nos quintais que são ruas onde as pessoas caminham cheias de opiniões. Mas fora isso. Não. A opinião não é mercado que funcione. Ninguém compra opiniões. Toda a gente as dá. Quem não a tem rouba aos outros. Repete. Tem por opinião que a opinião alheia serve o propósito da vida.
E quem pede silêncio? Opinativamente, por favor calem-se. Ouve logo. A opinião. E os direitos, senhor? E o direito de ter, de dizer, de mostrar que há opinião? Não! Não há espaço para silêncios no mundo da concretização opinativa.
Tenho para mim que a opinião é a matéria que conduz o espaço e que é por isso que andamos sempre à roda do sol. Não aprendemos outro movimento que não o circular. Opinativamente circular. Sempre à roda do mesmo. Vez após vez, após vez.
Talvez seja certo. Talvez faça sentido. Parece-me bastante rudimentar. Parece-me estúpido.
Mas, bem… é só a minha opinião!


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 9 de maio de 2017

Maiores de 18



Atentem, crianças. Está na hora de dormir. O que vem não é para os vossos olhos. Passou a hora dos desenhos animados sobre o herói que mata o vilão. E a hora das notícias. Já canta lá fora a coruja. Anuncia que vem um filme depois. Mas não é para vós. Não. Agora, é hora das pessoas crescidas tomarem o controlo da televisão. Que se faz tarde. O filme tem a rodinha vermelha no canto. E fala de envolvimento. Tem cenas recheadas de pudor. Ide. Ide dormir. Agora é só para maiores de 18.
Fica o silêncio. Enche-se de imagens. As imagens são o silêncio. De olhos colados à tela onde se fala de paixão. E os corpos acabam por se dar. Ocasionalmente despidos, em lençóis de linho. Há mãos a seguir as linhas da anca, lábios beijando a curva do pescoço, unhas cravadas nas costas… lascivo, devasso, sofregamente inadequado. Sussurros sobre amor eterno.
Ainda bem! Ainda bem que foram dormir. Sem ver. Sem ver esses corpos nus a digladiarem-se no leito, na procura da plenitude dos sentidos e dos sentimentos. Que vergonha. O amor não é para menores de 18.
Não! O amor não é como a guerra, que pode passar em horário nobre e encher de imagens banalizadas o ecrã onde os avisos sobre a intensidade do filme nada fazem senão de teaser para o que vem de seguida. Mas não faz mal. A guerra. Que vejam a guerra. O mundo não é um mar de rosas. Convém que todos saibam. Mesmo que o saibam com balas e poças de sangue no chão. Mesmo que o saibam com crianças cobertas de cinza a fitar o céu de olhares perdidos e sem luz. Mesmo que o saibam no cadáver ensanguentado do idoso morto à paulada por ter passado na rua errada, à hora errada. É o mundo em que vivemos. Convém que vejam. Em qualquer idade.
Mas o pivô despede-se. E leva a guerra consigo. E deixa o relógio juntamente com a rodinha vermelha no canto superior esquerdo, para ditar que não é hora de estarem acordados os mais jovens.  Não convém que vejam. Podem fazer perguntas. Causa desconforto explicar. Evite-se o desconforto de dizer que as pessoas se partilham para dar de si e receber do outro. Amor. E que é assim que as pessoas se fazem. Dando ao outro. É melhor que não haja explicações. Ide. Ide dormir, antes que o amor preencha a tela. Lascivo e eminentemente perigoso.
As imagens saltam. Subitamente, misturam-se umas com as outras. É a alça de cetim, que cai no braço. E a bala que voa e passa de raspão. E o toque dos dedos, a arrepiar a pele. E o lábio passado na lâmina que degola o inimigo e o deixa a esvair em sangue. E o grito de prazer. O grito de dor. A intensidade. A devastação. Tudo somado, assemelhando-se ao toque de um amante. Tudo somado, assemelhando-se ao arremessar de uma granada.
E as crianças vêem. Primeiro. E as crianças são mandadas para a cama. De seguida. Para não verem o que vem depois de terem visto o que já veio. E vão. Levam a guerra. E só. Porque lhes vedaram o amor.
É um universo construído pela atrocidade feita banal e a partilha feita tabu. Queremos mais amor e menos guerra. Mas fazer guerra causa menos embaraço do que fazer amor. E é por isso que mandamos as crianças para a cama. A guerra é para todos. O amor é para maiores de 18.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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domingo, 7 de maio de 2017

Legado


Para a minha avó e para a minha mãe


Carregaste a minha mãe no ventre
E, por legado, ela carregou-me a mim:
O início de uma história permanente,
Que se vinca em toda a gente
E que nunca tem um fim.

Carregámos, juntas, a amargura
Todas, três, segurando a imensidão
Na fraqueza, fui-me sentindo segura
No viver dessa ternura
Que sempre foi o meu chão.

Carregaste a minha mãe contigo
Por sorte, ela ensinou-me a amar.
No centro desse legado antigo,
Em cada conselho amigo
Eu aprendi a sonhar…

Carregaste em ti a minha mãe
Eis uma história sem fim
Um legado que hoje conheço bem
E que tento honrar também
Carregando-vos em mim…

Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet



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quarta-feira, 3 de maio de 2017

O Morto



De corpo inerte,
Lábios azuis,
Olhar vítreo:
Finge que está vivo,
Promete que vai ficar bem.

Exangue, frio,
Deserto, estendido,
Na sombra verde do cipreste:
Finge que está vivo,
Promete que vai ficar bem.

Não pode rir,
Não pode chorar;
Nem sentir,
Nem acordar.
Finge que está vivo,
Promete que vai ficar bem.

A verdade é natural,
Óbvia de tanto estar escrita,
Mas ele finge que está vivo
Promete que vai ficar bem
E toda a gente acredita!
A mentira é mais bonita
e não faz sofrer ninguém...

De corpo inerte
Olhar perdido,
Estendido, além…
Ele finge que está vivo,
Promete que vai ficar bem.
O mundo acredita...
... e ele também!

Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet



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