terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Verbo


Fiz da minha vida um alinhavo de palavras. Do meu quotidiano, um nome comum, onde os colectivos se ocultaram, na sombra de cidades e de pessoas cujo nome próprio se esbateu ou se fincou, em mil memórias e mil esquecimentos. Fiz da minha vida um alinhavo de palavras que se estende em frases e em textos e em romances.
No mundo gramatical da minha vida, não és virgula nem ponto final. Não te coloco nas frases dos meus dias como se pudesses pontuá-las. Não faço de ti "ous", nem "ses", nem "porques". Não te deixo servir de conjunção, unindo pontos sem emenda. Não faço de ti adjectivo para avaliar os contratempos e a felicidade, para descrever isto ou aquilo. Não és determinante nem pronome. Não há nada de definido ou indefinido em ti. Quando se trata de ti, não há possessivos, nem demonstrativos, nem numerais. Então, na gramática de mim, não poderias ser nada disto. E, não podendo ser nada disto, no mundo gramatical da minha vida, tens conjugações e tempos. És o verbo das frases insensatas da minha vida.
Consigo conjugar-te com facilidade. Vens no presente do indicativo dos verbos "sentir", "adorar", "querer". Vens no futuro do verbo "fixar", "continuar", "seguir", "permanecer". E deixas no pretérito perfeito os verbos "sofrer", "chorar"; os verbos "desistir" e "perder", os verbos que me acompanhavam num presente de desilusões que não existem contigo. És o condicional do verbo "ser" porque sempre me perguntei como seria encontrar alguém que me conjugasse no pretérito imperfeito para me dizer "era por ti que esperava".
És o verbo do mundo gramatical sobre o qual construo a vida. Às vezes és o "ser", o "estar"... pareces, permaneces, continuas. Pedes-me os advérbios de modo, desconstróis-me a ideologia de que  seja necessário pensar em complementos circunstanciais. Mas, circunstancialmente, arrancas-me os sentidos, vais buscar tempos compostos ou conjugas-te nos modos do conjuntivo.
No mundo gramatical da minha vida, não és virgula nem ponto final. Não és conjunção, nem adjectivo. Não és determinante nem pronome. Não o és porque não és o que se soma aos sentidos na busca de um sentido maior, melhor. Não és o que completa a frase. Não és o que a aumenta. És tão somente a base sobre a qual ela se constrói. A acção, o intento, a eternidade.
No mundo gramatical da minha vida és o que pode ser conjugado e vivido. Não poderias ser outra coisa. Porque estás em cada parte de mim. Porque me dás sentido. E, da mesma forma que não haveria vida sem ti, também não há frases sem verbo.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


Sigam também o meu instagram, aqui.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Feio (como o Mundo)



Da rapariga que usa os brincos de pérola feitos de plástico e da que usa a pulseira de prata feita de latão, dizem as raparigas que usam peitos feitos de silicone em vez de carne que são falsas. Talvez sejam! Que falsidade essa! Tão profunda e tão polida que se torna ricamente pobre. Disfarça-se de dificuldade luxuosa. Tão falsas essas raparigas que se tornam a elite dos cantos da rua. Que se disfarçam de mulheres e se fingem detentoras natas de direitos que não têm! Quem as fez acreditar que podiam falsear as jóias? Será que esqueceram o lugar que ocupam nos esgotos sociais? 
Do rapaz que se comove com a comédia romântica e do que não sai à noite para ajudar a mãe a arrumar a casa ou para cuidar da avó doente, dizem os rapazes que se juntam junto às esquinas com copos de cerveja e indecência na voz para falarem sobre as noites passadas com as miúdas a quem partiram o coração, que são maricas. Talvez sejam! Que mariquice essa! Tão profunda e tão intrínseca que faz deles avenida de impureza. Tão pouco máscula, tão pouco de homem. Parece que grita num tom rosado qualquer, de céu de fim de tarde, como purpurina no chão das boates de uma vida que ninguém quer. Será que esqueceram que pertencem aos armários do silêncio?
Das mulheres que se dividem entre dois empregos, o cuidado com os filhos, o casamento e as contas e as limpezas e o cuidado consigo próprias, dizem aquelas que se reúnem para discutir a vida alheia sobre cocktails, sob sombrinhas, nos clubes de elite, que são loucas. Talvez sejam! Que loucura essa! Tão profunda e tão desengraçada que as torna velhas mais cedo, acentuando as rugas do rosto e esmorecendo os sorrisos. E é porque querem. Na desculpa da falsa pobreza, querem a loucura. Essa de não ter tempo para o marido por causa dos filhos. De não ter tempo para os filhos por causa da casa. De não ter tempo para a casa por causa do trabalho. Parece que se esqueceram de viver sem a tecedura das desculpas. E não bebem cocktails. Pobrezinhas. Será que esqueceram o lugar da mulher, que deve aguardar pelo esposo no abraço das quatro paredes da casa? Será que esqueceram que devem tratar de si para que ele a ame e da vida alheia para que haja tema de conversa?
Do menino que usa roupa de adulto porque a outra não lhe serve e do que não consegue correr à volta do campo porque tem peso a mais, dizem os que jogam futebol nas equipas juvenis e se apaixonam diariamente pelo reflexo do espelho, que são balofos. Talvez sejam! Que gordura essa que se acumula e abana, feito gelatina, nas barrigas abastadas dos que não têm outro problema que não o do tacho e da meninice! Não é doença. É apenas mania. Apenas uma forma de ocuparem mais espaço no mundo. Terão esquecido que existe um espaço confinado para a sua presença? Quererão que se note que ali estão? Quererão ocupar a cadeira deles e a dos outros?
Francamente! Os pobres, os gordos, os cansados, os deprimidos, os homossexuais. Esses reprimidos. Francamente! O que fazem eles neste mundo? Não deveriam estar noutro lugar? Onde não incomodassem os outros, tão normais, tão dentro da norma, tão respeitadores da linearidade das coisas? Não deveriam estar num lugar onde fossem apenas... pessoas?
Dos que julgam, dos que comentam, dos que abalam, dos que maltratam. Dessas gentes normais. Dessas gentes que governam os países e o mundo. Dessas gentes que dominam as escolas e se popularizam na vida. Não sei se tenho o que dizer de todos eles. Vejo-os como são. Rosto de gente - tantas vezes bonito. Corpo de gente - tantas vezes bem tratado. Vida de gente - tantas vezes bem organizada. E acho-os feios. Acho-os feios nas palavras que dizem. Nas que pensam. E, a cada segundo, vejo-os vencer batalhas de injustiça, cujo prémio é pisar o outro sem motivo, sem resposta, sem retaliação.
Há uma feiura inerente no mundo. Nota-se menos no mundo das pessoas bonitas e magras e heterossexuais. Mas está em todo o lado. E algumas pessoas deviam maquilhar a alma... para esconderem como são feias por dentro.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

Sigam também o meu instagram, aqui.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A cada minuto



A cada minuto, acontece. É o jogo mais cruel do mundo. O jogo mais injusto. Mas acontece. A cada minuto. Algures. Sem outra razão que não a da ausência de razões. Alguém aposta tudo. Alguém perde tudo. Todos os dias. Milhares de pessoas. O mundo está cheio delas. E não importa o quanto se saiba. Não importam os riscos. As pessoas apostam. As pessoas perdem. As pessoas não aprendem.

É o jogo mais injusto de todos. Joga-se para se perder. Mas com a ilusão. Sempre com a ilusão. Porque um dia, em algum lugar, alguém ganhou. E essa pessoa. Essa pessoa singular que ganhou tudo, tinha apostado como ninguém e não perdeu. Em vez de perder, ganhou o que nunca ninguém ganha. E foi feliz até ao seu último suspiro. É esta a esperança. É esta a ilusão. É este o patamar inferior, a raiz, a fundação que sustenta o acto ponderado de se pôr tudo sobre a mesa, disposto a perder tudo.

A pessoa que ganhou não sabia que ia ganhar e não acreditava que ia perder. Era, por isso mesmo, igual a todas as outras pessoas. Mas o jogo, que não é justo, baseado nos alicerces bambos da sorte, foi-lhe favorável. O mundo não mudou. Nada mudou. Não houve sol que se pusesse mais cedo nem lua que andasse mais alta. Mas, de alguma forma, foi nesse dia que o jogo virou religião. As pessoas afirmam, por aí, no mundo inteiro: "eu acredito no jogo". Não o dizem assim, é claro, dizem de outra forma. Dizem que acreditam no amor.

A cada minuto, acontece. É o jogo mais cruel do mundo. O jogo mais injusto. Há quem perca tudo. Quem enlouqueça. Quem morra. Mas, independentemente do dano, as pessoas continuam a jogar, a apostar, a perder, a jogar de novo, a apostar de novo, a perder de novo. É um vício sem época e que nunca sai de moda. Faz pior do que o tabaco. Fere mais do que droga. Entranha-se mais do que as bebidas ébrias. Mas é socialmente aceite. Fica bem. E toda a gente se envolve nesse jogo do amor. Porque o prémio, constantemente acumulado, é o da felicidade perpétua que toda gente quer ter.

E, neste segundo, a cada segundo, em todos os locais do mundo, é certo: alguém ama alguém. Alguém aposta tudo. E alguém perde. E alguém chora. E alguém recomeça.

É o jogo mais injusto do mundo. Quase ninguém se sagra vencedor nessa saga incompleta de busca pelos improváveis. E, a cada minuto, acontece. Alguém morre do jogo. Alguém morre de amor.

Aposto tudo. No mesmo jogo. Pelas mesmas razões. Acredito nele. Acredito que posso ganhar. Mas não é só pelo prémio. É pela possibilidade. Essa que vivo todos os dias, independentemente do resultado final.

Apostei tudo. É verdade. E ganho todos os dias.

Se um dia perder... ao menos vivi.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


Sigam também o meu instagram, aqui.


Para lerem o regulamento do passatempo dos 10 anos do blog, basta clicar na imagem.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Lianor


"Descalça vai pera a fonte/Lianor pela verdura;/Vai fermosa, e não segura." (Luís de Camões)

Ninguém quer saber como é que Lianor vai para a fonte. Da beleza, se a tem, vulgar e corriqueira, num mundo de posters gigantes com modelos de elite, dirão talvez um piropo, se não houver à escuta agentes de autoridade. Dos pés descalços, se assim os leva, terão somente juízos. Alguns dirão que é pobre. Outros dirão que é louca. E outros dirão que a pobreza não é desculpa e que a loucura não é doença. Da segurança, essa que não tem, ninguém falará. Ninguém fala do que é importante, com medo que as palavras tornem real a realidade. É a mente tacanha das gentes: essa que teme mais falar do monstro do que ser por ele atacada.
Ninguém quer saber como é que Lianor vai para a fonte. Ninguém quer saber dela. Poderia ir calçada e ser feia. Poderia ir pelo asfalto em vez de seguir pela cama verde dos prados. Não importa. Não importa como vai para a fonte. Não importa onde vai. Não importa quem é. Num mundo onde se acumulam pessoas nesses nichos centrais chamados cidade, há muito pouco que importe a quem quer que seja. Então Lianor não terá um poema moderno, sem rima nem métrica. Não será atirada para prosa fraccionada, amontoada e díspar. Continuará lá: eternamente indo para a fonte onde ia nos dias em que a sua beleza era rara e a sua segurança importava a alguém.
Hoje não! Ninguém quer saber como é que Lianor vai para a fonte. Provavelmente Lianor nem vai à fonte. Só disse que ia. Talvez se vá encontrar com o namorado no café. Talvez vá fumar um cigarro à revelia dos pais. Os pais que serão, talvez, os únicos que se importam em saber onde ela vai... embora também eles já não queiram saber como.
Sob os pés, a erva verde que pisa de pés descalços canta poemas de outros tempos. E Lianor, moça jovem de espírito, criança de pensamento, mulher de corpo e intuito, pisa-a inconsciente de que a terra cante. E, como não se acha bonita de pés descalços, ignora a mensagem constante dos tempos idos e bebe da desatenção dos tempos modernos. Nem ela quer saber como vai para a fonte. Só quer ir. Possivelmente porque os outros foram. Possivelmente porque os outros não foram e ela quer provar-se diferente da maioria. Seja porque for...
Ninguém quer saber como é que Lianor vai para a fonte. Não vai segura. Ninguém a sabe formosa. Dela ficam os passos sobre o verde do caminho. Não vai segura. Se acaso morrer perguntarão, talvez pela vez primeira: como é que Lianor foi para a fonte? Mas não haverá resposta. Apenas silêncio. Houve o tempo das palavras. E ele passou...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


Sigam também o meu instagram, aqui.


Para lerem o regulamento do passatempo dos 10 anos do blog, basta clicar na imagem.