sábado, 31 de dezembro de 2016

Carta ao defunto 2016



Quando se vira a página para descobrir a contracapa da agenda, define-se que é algo novo que começa. E celebra-se. Começa tão cedo a celebração que ainda é feita na cabeceira do ano moribundo. Chamam-lhe “velho”. Que desrespeito! E ele cala-se, recordando que nem toda a sua existência se pejou de dor.
As pessoas não querem saber! Procuram a novidade das páginas ainda virgens de um novo ano. Apregoam que nelas mora a mudança. E vestem-se de esperança. Falam de sonhos. À beira da cama onde definha o ano que acaba.
Levam cuecas azuis e chapéus com números e óculos ridículos (como as cartas de amor) para o meio da rua. E celebram. Como celebraram antes. O novo começo. O término do ano. “Bom ano novo!”, gritam de euforia, antes mesmo das badaladas. E todos se riem. Na cara do ano que termina. E, que os olha, complacente, despojado de dias que lhe provem o valor e de forças para defender os seus esforços.
Meu querido ano 2016. Não serei escrava das tuas memórias, mas tão pouco me juntarei à amálgama mais ou menos amorfa que te celebra a morte. Trago-te em mim para o ano que começa…
Enquanto morres, sento-me a teu lado. Para recordar aquele dia de Janeiro, no qual me sentei à mesa farta para celebrar o aniversário da Mariana e onde ri até chorar com as histórias. Amizade e plenitude e compreensão. Na voz doce do André, vinda do escritório, ouvi nascer parte do “Via” e, nas lojas de perfume, reforcei a minha capacidade de falar sem medo da minha própria voz. Esse Janeiro, vou levá-lo comigo.
Mas foi Fevereiro. O Fevereiro onde vi mais um livro nascer. Onde fiz maratonas pelos stands de automóveis para tentar arrendar um que não me drenasse a conta. Sem fazer muito caso, celebrei o amor com um jantar corrido no centro comercial no Dia dos Namorados. E recebi a exclusividade nas mãos, com a garantia de que seriam muitos os dias passados em Cascais…
Estavas lá, meu doce 2016, quando, em Março, celebrei o Dia do Pai à distância, vestindo o meu melhor sorriso em torno das maravilhas da Hermès. E acompanhaste-me na direta que fiz com o meu companheiro, enquanto eu trabalhava na escrita e ele fazia nascer “Os elementos”, à espera das 4 da manhã: a hora de levar os meus pais ao aeroporto e o meu sobrinho ao sonho infantil da Disney.
Foi um mês de encontros. Recebi, no mesmo aeroporto e com as mãos aquecidas em copos de café, o sorriso jovial do meu irmão. O mesmo que me anunciou, dias depois: “Vais ser tia!”.
Entrei em Abril com a notícia. Preparada para a receber como quem recebe a Primavera, que tardou a ser quente mas veio em flor. E, de Abril a Maio, o trabalho que me fez ausente, uma vez mais, no Dia da Mãe. Um dia adiado mas que não desmarcámos, apenas para que eu pudesse vencer e dobrar mais um dos meus objectivos pessoais. Ainda em Maio, deixaste-me, meu querido 2016, viver dias cor-de-rosa. Com um sorriso no rosto e um aroma a Omnia no ar.
Junho. O mês de mim. A pertença eterna que tenho a quem me fez, a quem me ama, a quem me quer. A tarde em família. A maluquice. A foto da praxe. E a noite com o Helder e a Tânia. Copos virados e riso nos lábios. Fogos coloridos no ar. Alegria. Depois, o orgulho na Leonor, que dançou como quem faz piqueniques no sol britânico.
Houve o mês em que viste o amor fazer anos. O meu Julho. Regado a sangria e francesinha e piza fora de horas. E a feira, feita na rua, com nome de alho e aroma frutado. Um aroma que me levou às cores da maquilhagem que se somava, por fim, às minhas qualificações, mesmo a tempo de Agosto… que chegou com a minha avó.
Conversas cheias e doces, sobre a mesa, ao pequeno-almoço. Café com leite e pão com manteiga. Noites de cinema em casa. O francês e o português, remexidos e atabalhoados. E o trabalho. Tanto. Da escrita. Dos perfumes. Do grupo de investigação. E os concertos que, em simultâneo, eram tocados pelas mãos dele. E os parcos dias a apanhar amêijoa como se fosse ouro na Foz do Arelho. Os dois banhos – um de piscina e um de mar. O sol.
A visita da Leonor, que fez morrer Agosto e nascer Setembro. O aniversário do Ramiro. O aniversário do Helder. A idade de quem nunca me envelhece. À medida que a minha mãe se afeiçoava a um gato, eu decidia adotar um. Uma. A Samhain. Menina de olhos doces e pelo negro que, em Outubro, cruzou a soleira da porta e se fez família. E, além da Samhain… o Samhain! O jantar, a festa, a celebração, os amigos, as preces. O apagar, no caldeirão, da mancha que fizera deste um mês passado na Neurologia B dos Hospitais de Coimbra. O agradecimento pela vida e pela permanência do amor.
Novembro. Trago de Novembro o sabor do aniversário da minha mãe e da minha sobrinha, então mais nova. E da conversa junto ao fogão. E do abraço. Que mudou tanto. É um sabor a cheesecake que amarga um pouco no final… numa nova ausência, no dia da Marisa… que se colmata em textos e mensagens e chamadas. Mas nunca basta.
De Novembro a Dezembro. Um esfumar de memórias no cansaço. Trabalho. Natal. Festas do pijama por entre fotografias. Mesa recheada de tudo. De quase todos. E a notícia de uma nova sobrinha na distância. Com os olhos verdes e o rosto dos pais. Celebrou-se tudo. Por entre trabalho e trabalho. Em redor da mesa, o amor. Um amor que vinha de trás e que se contemplou também em ti.
Sento-me à cabeceira. Vivi contigo tudo isto, meu querido 2016! Foi assim que me fizeste crescer. De permeio houve brigas e desentendimentos. Contas para pagar, dificuldades. Mas não te desejo a morte precoce nem quero que te substitua um ano melhor.
Quero que partas em paz. Sabendo do teu papel. E que deixes entrar o ano que nasce com orgulho nos teus feitos.
Foi um feliz ano novo. Tal como profetizava a morte de 2015. Foi um feliz ano novo. Porque, quando começou assim, novo, eu tratei de o fazer feliz.
Até sempre, meu querido 2016. E obrigada por me teres levado nesta louca aventura de 12 meses cheios e inesquecíveis.


Tua até às badaladas,


Marina Ferraz



*Imagens retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Nas terras altas


Ouvi dizer. Vai haver chuva nas terras altas. Nas… terras… altas. Nas terras do céu? Será lá, onde moram os Deuses? E, se chove nas terras divinas, o que podemos esperar nós, meros mortais, sem controlo nem razão? Ouvi dizer. Vai chover. Nas terras altas.
Vai chover. Mas quem é que controla a chuva? Se, sobre as cabeças etéreas do que se faz dogma se sente o cair das gotas do tempo, quem pode dizer que é rei do firmamento?
Vai chover. Nas terras altas. Sobre as casas. Sobre os carros. Sobre as árvores e os penedos e as rochas e os rios. Sobre as cabeças dos Deuses. Todos eles. Seja qual for o credo.
Talvez, sobre os divinos ombros, façam surgir um guarda-chuva feito de fio de ouro e raio de sol. E talvez não saiam molhados da tempestade. Mas não podem travá-la. Já disseram. Vai chover. Nas terras altas.
Ecoa o trovão. Soa. Ressoa. Penetra os meandros da cidade onde as raízes alicerçadas fazem crescer prédios e moradias. A floresta é de cimento e betão. Faz soar mais seco o raio, à medida que deixa de ser luz e passa a ser som. E, atrás dele, o murmúrio miúdo. Contínuo. O principiar invernal de uma cascata fina, feita de lágrimas-nuvem.
Todos nós. Homens e Mulheres. Sediados na morada que assenta em vales e montanhas. Orando aos Senhores das Terras Altas. Louvando os Senhores das Terras Altas. Mas disseram. Ouvi dizer. Vai chover. Nessas terras. Lançaram avisos e alertas. Dizem que vai ser pior lá. Nas terras altas.
Do outro lado. Fora da janela. Fora de mim. A chuva. O trovão. O aviso. O alerta. Gotas que se formam no vidro. Desenhos que se criam à medida que as gotas se acumulam e escorregam. Gotas. Rios. Pensamentos. Enclausurados atrás dos meus olhos. Loucos. Fixados na chuva que cai. Abertos. Demasiado abertos para não criarem estranheza entre os que se dizem normais e sãos.
Mas a louca quer saber: por que razão é que chove lá? Nas terras altas. E por que razão pedimos o impossível a quem não consegue, sequer, travar a chuva? Quem é este Deus, tão pequeno e susceptível à tempestade?
Pergunto. Ninguém responde. A voz da rádio insiste. Vai chover nas terras altas.

Talvez a chuva seja Deus. Um Deus que chora. Como eu. Um Deus que é louco e incontrolável. Um Deus que cai e ascende. Em todo o lado. Até nas terras divinas. Até nas terras do céu. Até nas terras altas.



Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Além do que se vê



Ela não parece ter grandes sonhos. Acorda impaciente e segue o dia desejando a hora de dormir. Não se olha ao espelho. Ou olha de relance, enquanto passa as mãos pelo cabelo de forma atabalhoada e sai pela porta. No seu rosto, quase nunca há maquilhagem. Costuma haver sorrisos. Alguns. Mas nem todos são verdade. Alguns são. Mas esses reservam-se para alguns momentos e algumas pessoas. E escondem mágoas. Se escondem… Escondem justamente os sonhos. Milhões de sonhos. Aqueles que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita força. Avança pelas ruas, de mãos abertas e vazias. Gosta mais de dar do que de receber. Trata toda a gente com uma cordialidade que se faz formal na informalidade de palavras simples. Aponta as culpas às circunstâncias e diz que não mudaria nada. Não é exatamente verdade, embora também não seja mentira. Ela simplesmente convenceu a sua própria mente a acreditar. E avança. Pelas ruas. De mãos abertas e vazias. Sorrindo. Parece ter a idade do mundo e metade da idade que tem. Tudo ao mesmo tempo. Pesam-lhe nos ombros decisões e vontades. E medos. Ela tem muitos. Mas quase nunca os diz. Luta contra eles. Uma luta inglória que ganha, aos poucos, usando a força. A desmedida força. Aquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita vontade. Em conversas que dizem pouco mais do que nada, ela desvia exércitos de perguntas e faz o mundo acreditar que o universo do que é comum lhe basta. A casa. O carro. A rotina. Levar os filhos. Fazer o jantar. Envolver-se em atividades. Faz toda a gente pensar: é o que lhe basta. E, num primeiro olhar é. Mas não. Não é! Nos pontos aperfeiçoados dos seus bordados há a vontade de romper grilhetas. E nas palavras de incentivo que deixa, em conselho, a quem pede, há a vontade de mudar o mundo. Ela contenta-se com pouco. Mas quer muito, na sua vontade. Naquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ser especial. Caminha pelas ruas, como qualquer pessoa. Segue a rotina. Envolve-se nas histórias da família. Molda a realidade das tarefas, ora com obsessão, ora com desapego. E vê televisão, deitada no sofá, debaixo da manta. E lê livros de fazer chorar. E ri com publicações idiotas das redes sociais. Como a maioria, camufla a dor debaixo de uma camada densa de apatia. Finge não se importar. É tudo um bocadinho cinzento. Mas é o mal dos monstros. Debaixo da camada cinzenta, correm sonhos e vontades, há mares de força e entendimento. Formam-se arco-íris de sentimentos e sensações. Debaixo do que se vê, ela vai desbravando mato, à procura do que nem todos sabem que existe. E olha ao espelho, para dizer a si mesma que se ama – ainda que não ame -; e olha para os filhos para dizer a si mesma que venceu; e olha para as tarefas para dizer a si mesma que, por um dia, o cansaço não levou a melhor. Em cada um dos seus pontos, ela faz mais do que desejar a quebra das cordas que a amarram. Ela rompe-as. E, por maior que seja a mágoa, ela levanta-se. Por maior que seja a dor, ela sorri. Por maior que seja a tristeza, ela dá o melhor de si a toda a gente. E é isso que a torna especial. Especial como ela não parece ser. Mas é!
Ela pode até não parecer especial. Até pode. Porque, no meio desta amálgama de gente que povoa o mundo, ninguém parece. Mas, Deuses, são os sonhos, a força e a vontade que ela não parece ter que lhe dão brilho. E é um brilho maior do que o Sol. Um brilho que ilumina as ruas onde ela caminha, de mãos abertas e vazias. Segurando os fios que tecem a ténue hipótese de, um dia, o mundo se tornar um lugar melhor para viver.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Quem o é


O primeiro foi por coragem louca,
O segundo porque pôde ser,
O terceiro porque tinha a liberdade
O quarto por direito,
O quinto por sentido de dever,

O sexto foi por imitação,
O sétimo, por influência,
O oitavo na pressão de ser,
O nono porque não pôde escolher,
O décimo foi por intimidação.

Veio quem fosse porque outros eram:
Foram vinte, foram trinta, foram cem...
O primeiro foi-o por coragem louca,
Hoje, quem o é, é coisa pouca;
Hoje, quem o é, não é ninguém!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Costurei





Costurei. Na minha condição. De bicho. De mulher. É para isso que servem as mulheres. Para costurar.

Comecei por bordar a ponto pé-de-flor o sonho de não ser. Porque o sonho de ser estava estampado de origem no tecido de mim. Bordei o sonho de não ser essa mulher que é apenas o que se diz que a mulher pode ser.

Ponto a ponto. Vai à frente e volta atrás. Recusando-me a ser flor. Recusando-me a ser ponto. Recusando-me a ficar aos pés de seja lá quem for.

Mas bordar a ponto pé-de-flor esse sonho de não ser não foi suficiente. Bordei a cheio o desejo de não ficar no vazio convencional das coisas limitadas. E não! Não mantive o ponto dentro das fronteiras. Ultrapassei-as de propósito. Farta de barreiras. Farta de normas. Farta de limites.

Borde a recusa a ponto cheio. Um basta. Um chega. Não quero estar vazia!

Bordei. Bordei a rechelieu o grito que traçou as minhas próprias fronteiras. Em redor das minhas formas e dos meus vazios. Em redor das minhas próprias convenções, que se faziam ervas daninhas e proliferavam no centro das histórias que também era eu a criar.

Bordei. A ponto cruz. Fiz cruz sobre as coisas atiradas, insistidas, dissimuladas, intrínsecas e estapafúrdias. Tracei. Cruz atrás de cruz, feito rasura sobre o que se dizia que eu devia ser. E de cada cruz fiz estandarte. Não! Não sou essa mulher que se diz! Não sou essa mulher que se limita! Sou outra coisa… Sou algo que nasce e ascende, que cria novos limites. Sou quem quiser ser.

Costurei. Como se quer que uma mulher faça. Só que à minha maneira. O que descobri? A agulha é uma espada. E o que está roto, a precisar de remendo, é a sociedade.




 Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Cumplicidade



Para a minha irmã

“- What if I fall?
- Oh, darling… what if you fly?”
(Autor Desconhecido)

Foste a primeira a fazer-me voar. Pouco importa que tenha sido irresponsável. Pouco importa que tenha sido um voo breve, sobre a sala e na direcção do sofá. A verdade é que, quando ainda todos me tinham no universo cuidado de colos e seguranças, tu acreditaste que podias – e que eu conseguia – voar.
Naqueles dias em que, a partir da porta, me atiravas para o sofá, acreditavas que eu não ia cair. E era essa crença que me fazia sentir segura. Se podia ter-me espatifado no meio do chão? Podia! Mas nunca acreditei que acontecesse. Nem tu. Amavas o riso. E eu amava a brincadeira. E vivíamos bem nesse ciclo de cumplicidade. (Desde que a nossa mãe não visse…)
Algumas coisas definem-nos por um segundo. Outras definem a forma como vemos a vida. A forma como eu vejo a vida é esta: no caminho do voo existe o riso. Talvez caia, talvez não. O fundamental é tentar… E tudo na vida depende do impulso que nos dão, à partida.
De menina a adulta, ao longo da vida, senti de ti o impulso. Esse que me faz acreditar que consigo voar. Seja lá o que isso for. No amor, na escola, no trabalho. De ti, senti sempre o incentivo. A crença. O orgulho. A cumplicidade.
Aprendi contigo quão certos parecem alguns errados. E até que alguns erros são certos. Nesse voo pelo que não é aceite (ou permitido), aprendi que as normas raramente estão de acordo com a moral que pregam. Se nos podam as asas, como podemos voar? Não! Não somos assim. Nem tu, nem eu. E, nas nossas – muitas – diferenças, sabemos bem que o lugar onde acontece a vulgaridade não nos serve nem nos completa.
Construímos a cumplicidade nas nossas diferenças, a aprendermos uma com a outra um bocadinho sobre o que é ser mulher. Gosto da tua força. Gostas da minha meninice adulta. Eu gosto da maneira como sorris com os olhos, em alguns momentos. Será que alguma vez to disse? Falo muito em ti! Digo que és mãe. Digo que és forte. Digo que és lógica e ciência. Digo que não gostas de te cuidar e que te escondes um bocadinho… e que é pena, porque és das mulheres mais bonitas que conheço. Às vezes descrevo-te a pele clara e os olhos azuis… porque eles são lindos! Mas falo muito da beleza que te faz ficar para terceiro plano, atrás das necessidades das pessoas que amas e das necessidades das pessoas que nem conheces. És bonita por dentro. És bonita por fora. E só os Deuses poderão saber quão bonita serias se soubesses que já o és.
Não dizendo nada disto, o que eu poderia dizer é: és a pessoa que me fez saber que podia voar. Às vezes, é importante que nos dêem o impulso inicial e nos atirem pelo ar do tempo, rumo a tudo o que podemos ser. Claro: Somos irmãs. E tivemos brigas de irmã... algumas importantes, outras sem razão aparente. Ainda bem! Discutir contigo e discordar de ti também me fez quem sou.
Foste a primeira a fazer-me voar. Quando eu não podia, sequer, saber que existia um risco por detrás do voo. E, por me teres mostrado o riso antes das lágrimas e o céu antes da queda, acabei por ganhar a confiança que me fez lutar pelos meus sonhos. Quando ainda todos me tinham no universo cuidado de colos e seguranças, tu acreditaste que podias – e que eu conseguia – voar.
Presa à terra que te firma os pés no chão matemático da vida, não sei bem se sabes que também consegues – voar. Mas eu sei que sim. Estarei aqui para o impulso. No mar da nossa cumplicidade. E sempre que precisares, sabes que tens de mim, não só o amor, mas também as asas que me deste.



Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O duelo



Começou com a mais pequena das coisas. Uma parte de mim disse: “vai ser fantástico”. E logo outra respondeu: “e se não for?”. Discutiram, dentro de mim, à medida que, enfiada dentro de um bibe com riscas rosadas e brancas, metia um pé à frente do outro, preparando-me para os primeiros dias de escola. Foi de uma forma tão inocente, tão suave, tão calma que não fiz caso. Mas começou assim. O duelo.
Claro que, com canudos encaracolados e laçarotes no cabelo, dentro de vestidos com pregas e em xadrez, com uma lancheira na mão e uma mochila de brinquedos às costas, parece tudo muito mais importante e muito pouco nocivo. O coração tropeça acelerado no peito, como se a vida dependesse daquele dia… mas não o suficiente para se achar que é a morte a bater à porta. E uma voz vai dizendo “vai ser fantástico”. E outra vai questionando. E é como se não houvesse vozes.
Mas passaram os anos. Vieram os testes. As maratonas. As discussões com amigos. A entrada abrupta e de rompante da puberdade. Os primeiros amores. E, diários que se enchiam com as palavras das vozes, uma ou outra. Às vezes ambas. Em simultâneo. Uma em cada frase. Partilhando frases. “Vai correr tudo bem” – dizia uma. E logo a outra respondia: “vai dar asneira”. Nem sempre em termos tão educados. Nem sempre com tanta serenidade. E, se a primeira voltava, insistindo: “Tu consegues, tu és capaz!”; logo a segunda se impunha: “nunca conseguiste nada, não passas de um falhanço completo, a insistir no que nunca há-de ser”.
Construí, com as pedras que a primeira voz me dava e a segunda me atirava, muitos sonhos e muitas metas. Era como fazer um castelo de cartas com os Ases e as Copas da primeira voz e vê-los cair no sopro constante da segunda. Às vezes venci, às vezes fui derrotada. Não pelas vozes. Pela vida. E elas lá se debelavam uma à outra, dentro da minha cabeça, à medida que eu fazia por ser pragmática e fingir que as coisas seriam como tivessem de ser.
Mas o amor… (não é sempre o amor?!) entrou pela porta do fundo do meu pensamento e ganhou metástases em mim. Enraizou-se. E eu, que tinha sempre tentado calar as vozes em mim, dei-lhes ouvidos. “Tenta, tens de tentar”, dizia a primeira. “Ele nunca vai olhar para ti”, dizia a segunda. “Vá lá, vai correr bem.”, insistia. “Faz como quiseres, quem vai morrer infeliz és tu!”, respondia a segunda.
Fui. Fosse no teste, no amor ou na vida. Durante muito tempo, a insistência do “não”, do “nunca”, do “nada” prevaleceu. Muro em frente dos meus passos. Nuvem sobre a minha cabeça. Modelou-me. Venceu-me. E eu tentei calar as vozes. Ambas. Tentei ouvir a minha própria voz.
Um tanto ou quanto vazia, de olhos fechados e coração aberto, percebi por fim. Elas são a minha voz. Perceber mudou tudo.
Uma parte de mim disse: “agora vai dar certo”. E logo outra respondeu: “nunca dá certo”. Desde então, travam um duelo entre o que é feito na raiz da felicidade e o que definha na raiz da mágoa. É um duelo à moda antiga. Até à morte. E fico de lado, esperando para saber se me morre o sonho ou o cinismo.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O espelho


Para a minha mãe

Estará, provavelmente, impresso por aí. Numa qualquer fotografia desfocada, descentrada e em sobreexposição. Porque é essa a nossa maneira. E, por estar tão explicitamente colocada no centro do que distrai, a maioria das pessoas não irá ver. Não faz mal. Gostamos mais da cegueira das pessoas do que das pessoas em si. E elas, na sua simpatia e desapego, por muito que não o digam, também não são fãs do que permanece impresso. Nessa fotografia. O espelho.
É certo que fica atrás de uma camada flamejante de luminosidade. E tremido. E num canto mais ou menos incompreensível. Mas está lá. O espelho. Fica no sorriso, cúmplice e aberto. No abraço, quebrado pelas cócegas e pela conivência. Nos olhos rasgados, semicerrados. No olhar. Tão longe do que é passível de ser entendido. É espelho. Não a foto. A vida. Tu e eu. Monstros. Mas tão diferentes do mundo e tão iguais, que se espelha até a parte mais invisível da alma que luz. E eu vejo-te. E tu vês-me. E o mundo não nos vê. Mas não faz mal. Também gostamos mais da cegueira do mundo do que do mundo em si. E o mundo, na sua elasticidade meio plástica, por muito que nos ignore, também não pára para olhar para nós e nos revirar os olhos. Pela fotografia. Pelo espelho.
Cada dia que passa se torna mais visível o traço da ruga que se vai formando, ali mesmo ao lado do coração. Abrindo a cada tic e a cada tac, a cada movimento do ponteiro. Um traço que se faz linha e que se ata e que faz nó. A minha uniu à tua, num momento qualquer. Talvez quando o tempo decidiu fazer-me romper as entranhas do teu corpo e sair. Apresentaram-me ao mundo. E às pessoas. Mas eu sabia. Sabia que eu não era nem das pessoas nem do mundo. Mas antes desta linha que se fez laço, que se fez nós… que nos fez espelho. E talvez por isso eu tenha chorado. Talvez tenha sido só a alegria de saber que, no centro de um mundo de ódios, o teu amor me valia a comoção. E chorei. Enquanto te devolvia o mesmo amor. Um que não tem começo nem fim nem equivalência. Nesta vida ou noutra. Nunca.
Há muito tempo atrás, quando foste tu a nascer, por um motivo ou por outro, demoraste a chorar. Talvez, nessa pausa que se fez em teu redor, estivesses à procura das razões. E deves tê-las encontrado. O teu choro virou riso. O teu riso virou prisão. A tua prisão virou maternidade. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. E ali estava. Eu. Monstro como tu. Espelho. A chorar. Chorámos juntas, às vezes. E rimos juntas, às vezes. E tirámos muitas fotografias desfocadas, descentradas e em sobreexposição. Espelho. Sempre espelho. Imitando aos poucos a sensação do que se move de mansinho, entre a eternidade do dia que passa e a do dia que começa.
Tive o meu coração a bater fora do corpo desde o primeiro bater do teu. E tu arrancaste desse coração uma parte que me puseste nas mãos. No centro de um mundo - que não amamos – e de uma amálgama mais ou menos amorfa de pessoas – que também não amamos - , o que aprendemos foi a forma mais pura do amor – a sua gotinha de água, ínfima e perfeita – o amor que temos uma pela outra.
Não sou a melhor pessoa do mundo. Mas para ti sou. Não és a melhor pessoa do mundo. Mas para mim és. Espelho. Eu vejo-te. Tu vês-me. Igual. A cegueira do mundo não importa. O isolamento causado pela cegueira não importa. Importa o reflexo. Este. Meu e teu. Onde o amor olha para o amor e sabe quem é. Monstro. Mas não faz mal ser Monstro. Olha ali, na fotografia. Espelho-te. Espelhas-me. Tu tens-me a mim. Eu tenho-te a ti. Não estamos sós.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



Sigam também o meu instagram, aqui.  


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Antes de nascer o sol



Quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram parecia certo. Mais romântico do que casual. Era o fundo do copo, na noite que se fazia manhã. Sem clichés. Sem responsabilidades. Sem promessas. Era o amor, regado a cerveja e tequilla. Não deixava espaço para a vergonha nem para a inibição. Disseram palavras de afeto, rolando nos lençóis como quem dança a mais lasciva das danças. E, em seu redor, as paredes exalavam o odor do ópio e do desespero audaz. Inebriava-os com a noção intemporal dos corpos que lutavam, que embatiam, que se completavam. Sem clichés. Sem responsabilidades. Era melhor assim.
Estranhos na noite, fizeram-se conhecidos nos recantos suados, sob o olhar casual de olhos que não viam. Os deles encontraram-se. Por acaso. E os corações, que já não conheciam ritmo que não o do pulsar caótico e retumbante das colunas, julgaram, na ilusão dos graves, que talvez pudesse ser o destino. Não era destino. Era ocasião. E o fumo. E a erva. E as bebidas. Mas importa pouco, se pensarmos nas formas como também as bebidas e a erva e os fumos podem ser destino. Ele perguntou-lhe o nome. Ela perguntou o dele. Não ficaram a saber nada. No centro da agitação, a música era o nome completo das centenas de pessoas que ali se juntavam. E eles, que nem sabiam bem se tinham ouvido o nome um do outro, perderam-se de amores pela ilusão desse destino bêbedo e drogado que se fazia nascer, fruto do suor da noite.
Beberam as histórias da vida um do outro em copos de shot. Apagaram nas passas os vestígios da bagagem que arrastavam. Riram. Dançaram. E arrastaram-se para os braços um do outro, até o toque dos lábios lhes arder na língua e se fazer droga. Viciaram-se nesses beijos. E o destino que não era destino ajudou a fermentar aquele amor que não era amor, até que se arrancaram roupas do corpo e desejos da pele. Repetidamente.
Foi por isso que, quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram parecia tão certo. Tão mais romântico do que casual. Uma vibração tosca da sintonia dos homens com a Terra. Uma vibração tosca da sintonia das mulheres com o sonho. E das mulheres com a Terra. E dos homens com o sonho. Que despidos são todos pele e músculo e osso - só mudam os orifícios e as saliências. Sim. Terra e sonho. Era isso que tornava certa a obscenidade. A luxúria, após a noite quedar, não era mais pecado do que a comunhão. Era um ritual divino entre dois seres que se achavam, depois de perdidos e que se perdiam para se encontrarem. Um ritual algo cru. Algo áspero. Mas que, para eles, era todo feito em suavidade e alegria. Ainda bem para eles!
Toda uma imensidão. Sem clichés. Sem responsabilidades. Sem promessas. Só com o toque. Uma luta corpo a corpo. Desumana. Na batalha dos sentidos que terminaria, ao nascer do sol, com o caminho feito nas roupas da noite passada e os olhares de vergonha colados ao chão. E com asco colado na sola dos sapatos. E pó nas roupas. Porque, de súbito, as bagagens esquecidas caem na cama, estrondosamente. Lembrete da história que os faz pessoas. Lembrete da vida que ficou e da que segue. Então, o corpo nu não faz sentido. E o cliché assume-se. E a responsabilidade aparece, raramente só. A promessa que nunca se fez foi quebrada.
Eu sei. Não parece. Mas é uma história de amor. De comum, olvida-se (ou condena-se). Mas ainda é uma história de amor. Talvez não de um amor que se dá – ou recebe. Mas de um amor que se faz. Depois de meia dúzia de copos virados.
Para eles, parecia amor. Agora não parece. Mas parecia. Mais romântico do que casual. Antes de nascer o sol. Quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.  





terça-feira, 1 de novembro de 2016

Dia de folga



Acordar. O grito do silêncio no lugar do despertador. Soando na cabeça como um sino de igreja. Infernal e sem abafo. Lembrando. Dizendo. A hora passou e é hora. Vem correr. O dia já corre e o relógio é inimigo.
Com o som desse silêncio, os pés pousam no chão. E as mãos comprometem-se com a tarefa acumulada dos dias passados. Apanham do chão a roupa. E levam-na ao encontro da água, dos pós, dos aromas. Ao encontro do sol. Ao encontro do que fica lá fora estendido. E aproveita-se a mais ténue brisa. O mais breve dos raios soalheiros. Até que, voltando ao interior, se traz calor e fumo e vapor. Se acresce e finaliza.
As mãos comprometem-se com a louça. Fazem jogos sonoros. E mergulham na água. Tilintando pratos e copos. Agitando panos. Uma dança. Uma coreografia. E avança, ao som desse silêncio, para uma dança de pares. Com a vassoura. Com a esfregona. É uma festa onde os intervenientes dançam pelo chão. Com ou sem vontade.
Até ser hora de pôr na mesa a refeição. Caseira. Com o ponto de tempero. Com o sabor edificado nas escalas do que se busca nos permeios insaborosos da vida. Uma refeição que se trabalha e engole sem provar.
O dia avança. Avança também. É hora!
Cama feita de lençóis limpos. Toalhas de rosto trocadas por aquelas cujos aromas evocam flores e frutos. Telefonemas trocados, marcando consultas e necessidades. E pés saindo de corrida, levando nas mãos a lista rabiscada de tudo o que vai faltando. Carrinhos que se enchem. Talões que se entregam. Cartões que se passam. Cifrões que passam de umas contas para as outras à medida que anoitece o dia.
Acumulam-se compras na dispensa. Reciclagem nos sacos. Cansaço nos ombros.
E a hora que corria chega. É hora. De dormir. A folga acabou. E amanhã é dia de trabalhar…



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet






Sigam também o meu instagram, aqui.  



terça-feira, 25 de outubro de 2016

Mergulho



Mergulho em mim mesma. E sufoco nos meandros do ser. Entre a pele e a muralha que a enrijece, como se temesse o agravo do que vem. Não sei se ela se ergue para te impedir de entrar ou para me impedir de sair.
Presa nos meandros de mim, percebo que só posso amar-me odiando o mundo. E que, se amar o mundo, o ódio se fará recuar até ao que fica dentro, no local onde sufoco.
Mergulho em mim. Há corais de todas as cores no fundo do oceano da minha alma. Mas muitos são negros como a noite. Ecoam a desgraça e o descontentamento. Libertam bolhas de mágoa e desespero. Cumprem as profecias do que nunca se fez ouvir entre os cantos inusitados das videntes.
Ouve-se a voz. Monstro. E mergulho. Tenho um fascínio fora de época por esse monstro que, preso nas profundezas de mim, vai fazendo a sua voz presente através da inusual compreensão do que me enrijece a muralha.
Não sei. Não sei se o muro é prisão. Talvez seja. Mas tão segura é esta prisão que não quero, não ambiciono, a liberdade.
Atrai-me a clausura independente que me afasta de tantos quantos ostentam mentiras nos rostos. Sorrisos. Ser triste é uma bênção. Ser só é uma bênção. A dor vem da expetativa da felicidade, do amor, de todas essas palavras que se despem e prostituem feito promessas.
Mergulho em mim. E sufoco no vislumbre do que trago dentro. Metade é cansaço e o resto é rarefeito. Reparto os sentidos em migalhas e sinto pouco mais do que apatia.
Há a muralha. Olhando para ela, há quem diga que não tenho nada. E agarro as palavras nas mãos como diamantes. Tenho isto. Sempre tive isto. E só.
Mergulho dentro de mim. É um sufoco que me agrada. Esse ódio que me mura a pele. Esse amor que não faz sentido.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet






Sigam também o meu instagram, aqui.  


terça-feira, 18 de outubro de 2016

Neuro B



São quatro paredes. E uma janela pequenina. Que dá para outra parede. E para o telhado. E para as árvores, lá ao longe, junto ao estacionamento. As árvores verdes. Todas menos uma. Vermelha. A anunciar o Outono. Chamando para si os olhos cansados das paredes e tetos. E dos sofrimentos. E das lágrimas que – como se quer – caem dentro da alma e não transparecem. Às vezes é preciso retardar o Outono em nós.

O suspiro nasce, entre os segundos de silêncio, sempre quebrados. Seja por um bip mecânico, por um grito ao longe, por uma conversa ocasional no corredor. E, lá ao fundo, orgulham-me os traços ciganos de dezenas de meninos e meninas, de senhores e senhoras, todos sentados à espera, com fé e sacos de comida. Nos olhos ciganos encontro algo de muito familiar. Como traços de uma mão que é minha. E sempre demoro a perceber porquê. É uma familiaridade reticente, de alguém que desviou o olhar. Mas sei. Sei onde vi aquele olhar cigano. Vi-o no espelho, pela manhã. Recheado da mesma preocupação, do mesmo medo, da mesma angústia. Cheio de rezas aos Deuses e de pedidos à Mãe. Cheios de desespero. Cheios de tudo o que me esvazia por dentro.

Encho-me de pontos finais. Para que, em vez de conclusos sejam apenas reticências, repetidas no limite louco da impaciência. E cada segundo é uma vitória. E cada vitória é um salto de fé. De um ponto para o outro. Sempre reticente. Sempre ali.

Da comida levada aos lábios. Da mão nas costas. Do beijo no rosto. Da palavra. Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem. Acredita comigo. Monstro eu, que me debruço na cama, à procura de ver o que não se encontra senão no leito do amor que se deu toda a vida. E monstro a vida que me faz debruçar sobre os medos que me tingem o amor e o tornam dilacerante e atroz. O sumo pela palhinha. O lenço que pende. A voz que se arrasta num “ai”.

Ao lado, alguém que tem dores não tem família. Nem voz que diga mentiras alegres. Nem alguém que simplesmente se sente e olhe para as paredes e as árvores verdes e vermelhas. Ao lado, alguém morre só numa cama de hospital. Mas nunca importa verdadeiramente o quarto ao lado. Pois não? Os outros podem bem ser apenas o que não existe. Lembremos: para eles, os outros somos nós. Os fantasmas que povoam a assombração do quarto que não existe e no qual não fica deitada uma vida cheia de sentidos. Tão egoísta é o amor que nos perdemos a achar que o mundo começa e acaba na Sala 3, Cama 36. E, se não acaba o mundo inteiro, ao menos o meu permanece ali, deitado. Entre as paredes que me esmagam.

Sorrio. Por fora. Choro. Por dentro. Lá ao longe chamam-me as regras inusitadas e nauseabundas de um mundo que acha que as prioridades que me traçam a estrada não justificam os meios nem as causas. Também lá do longe quem olha vê “os outros”. A vida é mesmo assim. Querer que ela veja é querer que os olhos cegos das sepulturas mentais se abram ao mundo, libertando, não poeira, mas gotas de sanidade. Na sua falta, ficam os meus pés assentes. Entre quatro paredes. Junto à janela pequenina. Que dá para outra parede. E para o telhado. E para as árvores, lá ao longe, junto ao estacionamento.

E cada segundo é uma vitória. Cada colher de sopa é uma vitória. Cada palavra é uma vitória. Cada passo é uma vitória. Tenho visto a fé ganhar algumas batalhas. Saltos dados a custo. De um ponto para o outro. Sempre reticente. Não faz mal. Vamos devagar. Eu estou aqui. 


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A velha



Para a minha avó 

Disseste, e passo a citar: “ninguém gosta de passar tempo com uma velha!”. E eu, que nunca diria esta frase, fiquei a pensar sobre ela.
Eu era pequenina. Naquele tempo em que até a memória nos é escassa e o tempo parece uma eternidade. Dessa época guardo memórias esbatidas e imperfeitas, como se houvesse nevoeiro entre acontecimentos e vivências. O que lembro claramente? Lembro o calor, o colo, o carinho. As horas passadas ao redor de brincadeiras e canções e sonhos. Quem estava lá, nessas memórias, não era “a velha”. Era a minha segunda mãe, embalando-me, protegendo-me, acarinhando-me.
Mais tarde, veio a escola. E foram muitas as horas de estudo, em redor dos deveres, que se articulavam com ensinamentos de vida. Aprendi a somar, a subtrair, a multiplicar (e, mais ou menos, a dividir). Aprendi a escrever. Aprendi que não se deixa para amanhã o que se pode fazer hoje. Quem estava lá, nesses momentos, não era “a velha”. Era a minha educadora. A minha mentora. A professora paciente e incansável.
Com a escola, que avançava, viera as agruras da vida. Dos colegas que troçavam, dos rapazes que não me ligavam ou ligavam demais. E foram muitos os conselhos: “Isso é tudo por inveja!”; “Tens tempo para namorar, agora estuda para um dia seres alguém!”; “não há amigos para sempre!”; “não gosto de te ver triste!”. Tantas frases. Tantas palavras. Tantas certezas. Nessas horas, quem estava lá não era “a velha”, era a minha conselheira, o meu ombro, a minha força.
Depois da escola e de todas as suas – muitas – agruras, veio o trabalho. Com ele, a distância. Mas, todos os dias, há as palavras, as chamadas. Seja um dia bom ou mau, todos os dias, do outro lado da linha, encontro força e conforto. Cada chamada é como chegar a casa. Cada chamada é uma respiração profunda a aquecer a alma e a torná-la mais leve. Apenas com a voz de ternura e parcas palavras trocadas, sinto que o peso do mundo sai dos meus ombros e que o dia melhor está ali, na esquina, à minha espera. Cada chamada me acorda a criança que vive dentro com a história de encantar que mora num beijo de boa noite. Do outro lado da linha quem está não é “a velha”, é uma das minhas melhores amigas, a trazer-me força e a fazer-me sentir especial.
Talvez ninguém queira passar tempo com uma velha. Mas tu não és "uma velha". És um Universo de coisas, de momentos e de sentidos. E, contigo, se pudesse, eu passaria cada segundo da minha vida!

Marina Ferraz




Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Ficar



Fica no peito
Como a lua fica no céu
Dependente da luz
De um sol alheio…

Quero ser eu
Mas não sou minha
E permanece o anseio!

Se voar, sou andorinha…
Mas quem quer voar sozinha
Sem saber de onde veio?

Fico.
Ficar magoa e destrói
Um sentir de quem perdeu:
Permaneço e não sou eu…
Se é amor, por que é que dói?

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.  

sábado, 1 de outubro de 2016

O murinho


Para o meu avô


No murinho se sentava a minha muralha. Homem forte, embora a idade calejasse as mãos e arrastasse passos. Cada dia um pouco mais. Naquela nuance de invisibilidade cega que carregamos nos olhos. Mas íamos. Juntos. E trocávamos parcas palavras cheias de sentidos, à medida que ele se propunha a concretizar todos os meus desejos e eu lhe depositava nas mãos a irrealidade de sonhos que nunca viriam a ser. Íamos de mãos vazias. Dadas. E voltávamos com gelados. Sentávamo-nos. No murinho. Lá onde crescia o chorão. E onde se acumulavam as folhas, no final do Verão, quando o Outono batia à porta. Sentávamo-nos. E desfrutávamos do doce sentido da vida enquanto aproveitávamos os raios de sol poente. Depois de jantar. Depois do dia. Depois de não haver depois. No murinho. Este murinho. Tão cinzento que se esquece. Tão pequeno que nem se nota. Tão esquecível que as arestas lhe foram tomadas pelas ervas e as frestas lhe foram invadidas pelo musgo. Tão esquecível que os buracos alastraram sem que ninguém se lembre de o mandar arranjar.
No murinho se sentava a minha muralha. Sempre com um sorriso para dar, por entre as rugas que se formavam, simpáticas, nos limites dos olhos, e as manchas pequeninas, feito sardas, que lhe apareciam em pontos específicos do rosto. Tinha sempre um sorriso. Um sorriso que caía bem por entre a rijeza da postura idosa e idónea. E era bom sorrir de volta, semicerrando os olhos. Em criança, parecia-me sempre que havia uma juventude igual à minha no sorriso que lhe irradiava estrelas nos olhos. Companheiro de brincadeiras, de caminhadas, de sessões de cinema em casa. Companheiro do gelado que comíamos sentados no murinho.
Naquele murinho construímos a minha realidade. A que não existia. Aquela que vivia dentro da minha cabeça de menina, no topo das nuvens do meu coração. O sonho. Uma história ou outra sobre o dia na escola que se dizia de um fôlego e virava, com facilidade, mote para me encher a alma com a sensação plena do orgulho que ele tinha em mim. Naquele murinho, ao lado da minha muralha, construí muito do que me viria a tornar. E algo na postura suave e doce daquele homem, de cabelo ralo e branco, quase sempre com o típico boné tapando a careca, me dizia que, fizesse o que fizesse, ele havia de me proteger.
Eram conversas de chocolate quente. E gomos de maçã de conversa. E dedos mindinhos dentro do whisky forte e velho. E peças de dominó a chocar umas com as outras. E infinidades em segundos. E gelados. Gelados comidos no murinho. Nesse murinho. Aquele no qual, ao meu lado, se sentava a minha muralha.
Sobre o muro? Permanece lá. E, porque ninguém lhe liga, deteriora-se. E, porque ninguém nota, perde pedaços de cimento e apodrece. E, porque ninguém sabe, vai degradando aos poucos a ideia de que alguma muralha possa, um dia, ter encontrado momentos de repouso sobre si. Sobre ele? Não está aqui. Mas, porque ninguém liga, permanece. Mas, porque ninguém nota, ainda vive e sorri. Mas, porque ninguém sabe, toma nuances de eternidade e deixa no ar notas saudosas do tempo em que, no murinho, eu me sentava com o gelado ao lado da minha muralha.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Não vás



Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa. Ainda tens os olhos recém-nascidos para o mundo. Acreditas que o podes mudar. E talvez possas. Mas não queiras ir mudá-lo já. Vais ter tempo. O tempo é o que menos falta num mundo onde falta quase tudo.
Sei que não parece. Sei que a fé abranda o tempo e que parece que não estás a fazer nada. Mas estás! Estás a preparar-te para mudar o mundo. Um dia. Outro dia. Mas espera. Antes de segurarem as armas, as tuas mãos precisam de segurar outras mãos. Antes de abrirem para as conversas formais e os gritos de guerra, os teus lábios precisam de conhecer a profundidade dos beijos do verdadeiro amor. Antes de te levarem à distância, os teus pés precisam de criar pegadas no centro do que te torna tu. Não queiras crescer demasiado depressa. Não vás.
Não vás. O chamamento é claro mas não é teu. Não queiras que seja. Não queiras crescer demasiado depressa.
Sei que te deram o sonho. Que o sonho virou semente. Que a semente ganhou raiz e que ela alastra dentro de ti. Sei que é ela que te brilha nos olhos. Esses que são recém-nascidos para o mundo e que eternamente desejam a hora de voar mais longe.
Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa. Ainda há sonhos à espera de te encontrarem na inocência dos anos, enquanto as nuvens que chovem lá fora são incapazes de te resfriar o coração virgem e intocado. Esses sonhos esperam encontrar-te aqui, onde guardas a inocência dos anos e a pacatez da infância, a necessidade do afago.
Eu sei que queres ir. Como soa a promessa essa partida! O mundo já to pede – chamando, em tom de assombro, o teu nome, num sussurro. Ele chama. Eu ouço. Tu ouves. Queres ir. Não quero que vás. Por favor, ouve antes a minha voz. Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa.
Eu sei que te falei de concretização. Que te disse que podias ser quem quisesses. Mas ainda tens muito a aprender. Ainda não te falei das vontades do mundo, de como elas se sobrepõe às tuas, nem de como se aprende, nas curvas mais sinuosas do caminho, a superar as decepções com um sorriso no rosto. Eu sei que queres ir. Lá, onde podes ser quem ainda não és e onde te podes tornar o concreto de todas as tuas irrealidades. Mas não vás depressa demais.
O horizonte tem uma tonalidade de ouro e diamante nos teus olhos de safira. E, nos teus olhos, esses olhos onde vibra a ilusão do que se transforma em desejo do amanhã, eu vejo a promessa retardada do amanhã que, para ti, nunca mais chega e que, para mim, se aproxima numa corrida desleal. Quero envolver-te no manto de pedra dos meus braços e impedir-te de crescer. Selar-te a vida neste tempo em que se saram os desgostos com um beijo e um pedido de desculpa. E tudo se esquece. E tudo recomeça, como se houvesse pequenas eternidades de mel no agridoce dos teus sentidos. Mas, nos teus olhos, reflecte-se o horizonte. E deles ecoa o chamado que te faz erguer e avançar. Cada passo mais perto da idade. Cada passo mais longe de mim.
Não vás. Não ouves. Não queiras crescer demasiado depressa. O sonho. Ali. Vais crescer. Quero dizer que não estás preparada. Duvido. Questiono. Decido. Quem não está preparada sou eu! Cresceste demasiado depressa. Vai. Precisas de ir. Vai mudar o mundo. Mas, por favor, Espera apenas mais dois segundos. Por mim. Eu vou contigo!


Marina Ferraz





Sigam também o meu instagram, aqui.  

terça-feira, 20 de setembro de 2016

La Muerte



“La muerte, la muerte”. Era o que ouvia. Caía-lhe dos lábios. Com peso de pedra. Gritado. Um grito que parecia ter ficado preso na garganta. Entalado. Tempo demais. E a voz rouca e sofrida, com ecos desse anteontem engasgado. Inquietude. “La muerte”. Sabor acre do veneno sensaborão dos dias que passavam na boca onde havia dentes podres e estas palavras: “La muerte”.
Não tinha pernas. E agitava os braços. Não havia intento. Se alguém lhe lançava uma moeda, soava o grito. “La muerte”. Era só o que pedia. Não queria nem comida, nem dinheiro, nem palavra. Na sua esquina vendia-se apenas sujidade e não se pedia esmola. Os olhos, claros de cegos, prendiam-se ao céu como se o vissem. E furavam a multidão. Furavam as roupas, as peles e as carnes. Chegavam aos ossos, que roíam com as palavras: “La muerte!”.
E atravessavam as ruas pessoas em passo de fuga, não fosse o homem sem pernas persegui-las até ao infinito conforto dos seus lares. Temiam-lhe a imagem. Mas mais as palavras. “La muerte”. Ninguém quer ouvir falar da morte. Como se, a cada menção, o lembrete da efemeridade provocasse chagas pelos corpos. Uma queimadura constante na recordação passiva de que somos apenas carne à espera de apodrecer sob as camadas arenosas da terra movida.
“La muerte, la muerte”. Mesmo na rua vazia, a voz soava. Uma solidão que se fazia aviso. E um aviso que não passava de oração. Tinham-lhe tirado as gentes. As pernas. Os olhos. A dignidade. E, por tanto tempo, a voz. Naquela esquina da rua, invocava o direito à voz. E era a voz que elevava já para pedir a morte em vez de esmola.
Quando morreu, ficou a parede grafitada. E nela alguém escreveu “La vida”. Mas ainda se ouve na rua. Não tem olhos. Nem pernas. Nem braços que agite. Nem voz que erga. Mas ainda se ouve. Mais claro. Mais alto. “La muerte”.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.  

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Adoeço



Adoece-me o rosto no cansaço. Pálido e olheirento, ele toma tonalidades amareladas, gastas, pouco sadias. E vincam-se sob os olhos tapetes inchados onde há lágrimas por verter e negrume. Adoece-me o rosto. E há nele traços incontestáveis que se chamam de sintomas. O diagnóstico faz-se nas ruas. Parece doença. Mas é cansaço.

Adoece-me o coração na mágoa. Arrítmico, descompassado, toma ritmos seus, que diferem do mundo e dos restantes corações. Bate e, uníssono com o ritmo da cidade. Uma cidade de caos. E dói no peito, enquanto bate. Um aperto, um sopro. Pausa e retorna. Adoece-me o coração. E há no seu ritmo traços incontestáveis. Sintomas. O diagnóstico faz-se à mesa, sobre as refeições, acompanhado de vinho verde. Parece doença. Mas é mágoa.

Adoece-me o corpo na angústia. Seco. Escanzelado. Constantemente à procura do que não tem, seja sal ou amor. E a intercalar entre a dor severa e a moinha constante, permanente. Essa que não quebra mas verga. Essa que não mata mas mói. Adoece-me o corpo. E, nas suas arestas há traços incontestáveis do mal que me aflige. Sintomas. O diagnóstico faz-se nas conversas de ocasião. Parece doença. Mas é angústia.

Adoece-me a alma na solidão. Incauta, imunda, recheada de promessas não cumpridas e de palavras por escrever. Tem rasgões do tamanho de rios e crateras do tamanho do Universo. Faltam-lhe bocados. Permanece rasgada, dentro de mim. E os pedaços rasgados estão amarrotados e sujos. Já não sou eu. Adoece-me a alma. E transparece, projeta-se no mundo essa matéria que a aflige e a corrói. São os sintomas. E faz-se o diagnóstico nas avenidas dos sentidos. Dizem que é doença. Mas é solidão.

Adoece-me o sonho no tempo. Triste e pardacento, vai descolorando e tomando a transparência de tudo o que não lhe coube nos desejos. Vai desaparecendo. Também ele emagrece e se deixa decompor em mil pedaços de nada. Adoece-me o sonho. Fica moribundo, a lutar já sem forças nem razões. É esse o sintoma. E, no concílio, faz-se o diagnóstico. Dizem que deve ser doença. Mas é realidade.

Adoeço. Há mil sintomas. Parece tumor a alastrar. Arrastando as suas metástases até ao mais profundo de mim. Adoeço. Parece cancro. Mas é só tristeza.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




Sigam também o meu instagram, aqui.