terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Todas as noites


Todas as noites ele chorava. E ela levantava-se de um pulo. Percorria o corredor em surdina. Entreva no quarto. Beijava-lhe o rosto. E perguntava: " O que foi, meu amor?". Ele sentava-se na cama. Contava-lhe a história. O sonho. E terminava com a frase. Sempre a mesma. "Tenho medo, mamã".
Pacientemente, ela sorria. Estendia-se na cama ao lado dele. "Isso é porque és corajoso", dizia-lhe "Sem medo, não pode existir coragem". Adormeciam os dois. Todas as noites.
Todas as manhãs lhe diziam. "Devias deixá-lo chorar. Assim, nunca vai habituar-se a dormir sozinho". Todas as manhãs ela selava o conselho com um beijo e um sorriso breve que prendia à total ausência de resposta.
E chegava a noite. O choro. A corrida. A história. O abraço. O sono. O aconchego contente do que é presente e completo.
Mas, um dia, o choro não veio no cair da noite. E ela, que pacientemente aguardava em silêncio, começou a ouvir o tic-tac de todos os relógios da casa, da rua, do mundo, procurando algum sinal de lágrimas no quarto ao lado.
O choro não veio. O tempo passava. E sentiu os olhos repletos de lágrimas. Ele estava a crescer.
"Por que choras?", foi a pergunta ensonada que ouviu. Não contou a história. O sonho. A forma como custava ver o seu bebé ser menino e saber que amanhã seria homem. Os adultos não eram bons a contar esses contos de enredo parco, todo escrito em linhas de luz pela mão da alma.
Tudo o que disse foi: "Tenho medo". E tinha. Então, levantou-se, percorreu o corredor em surdina. Entrou no quarto. Beijou-lhe o rosto adormecido. Estendeu-se na cama ao lado dele. E pensou: "sem medo, não pode existir coragem". Adormeceu com o medo. A coragem viria, talvez, amanhã.


Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Traição



Eu nunca poderia estar numa relação sem trair. E soube, justamente por isso, que seria difícil encontrar quem aceitasse amar-me. Mas tinha tempo. Tempo para esperar por quem soubesse entender que, por mais que amasse a ideia do amor, não conseguiria ser a moça recatada que não se dá por aí. Eu nunca poderia estar numa relação de amor com quem não entendesse que as minhas necessidades me levavam de encontro a outros amores. E pode parecer errado em todas as formas, mas a verdade é esta: posso ser infiel mas não podem, ninguém pode, acusar-me de mentira.

A todos aqueles que quiseram amar-me, eu avisei. - Há noites em que me dou à escrita. Há dias em que permito que as palavras percorram a minha pele com as pontas dos dedos. Há dias em que conheço personagens e as deixo entrar em mim, à medida que me envolvo nos traços mais superficiais e mais profundos do seu eu. Por vezes, não vou querer estar contigo. Vou querer estar com ela. Com a escrita. E é com ela que vou adormecer. Em alguns dias, vou querer acordar nos abraços quentes que ela me dá. Vou beijá-la na boca, sentir-lhe o veneno doce da amargura e permitir que ela faça de mim o que quiser. - Sim, avisei-os a todos. E quase todos partiram. Não entenderam. Não souberam que essa traição ao amor fiel era a única forma de não trair quem eu sou. Até ele. Ele soube. Ele entendeu. Ele também não sabe estar numa relação sem trair. Dorme frequentemente com a música. Tem, com ela, quase uma segunda relação. E, de alguma forma, formamos os quatro uma família onde toda a gente se trai e ninguém se importa.

Houve um dia em que acordei sozinha. Percorri, com os pés nus, cada divisão da casa. Encontrei-os aos três. Amantes improváveis, conferenciando em frente ao piano da sala. Ele e a música e a escrita, falando-lhe na voz, cantada, insolente. Julguei, por momentos, que tinha acordado com o ciúme. Mas, olhando para a ternura daquele momento a três, não consegui sentir-me traída. Nesse dia, mais do que ele ou a escrita, aprendi a amar a música que os ligava, que nos ligava, que nos tornava um só. Não é coisa de menina de bons costumes, eu sei. Mas, nesse dia, convidei-os a fazerem parte de mim. Foi o último dia em que acordei sozinha. A minha cama ficou cheia. A minha vida também.

Há quem nasça para o amor singelo de um só e saiba amar sem ser amado. Há quem nasça para o amor a dois, sem espaço para mais nada, para mais ninguém. Há quem nasça sem amor para dar ou receber. Por todos, tenho respeito e aceitação. Mas eu não nasci para esses amores que acontecem no limite de paredes de ferro. Não nasci para os contratos. Não nasci para o espaço confinado da partilha. O amor que eu sei sentir não é somente humano. Não amo apenas o que vejo. Não amo apenas o que toco. Amo esta dimensão meio louca do que não é concreto mas toca, do que não é visível mas atormenta. E amo amar essa loucura incoerente. É um amor que trai. Trai as noções do que o amor deve ser. Trai as convenções, ditadas, escritas, impostas, tatuadas na sociedade. Mas não me trai a mim. Não o trai a ele. Não trai os nossos amores inconcretos. E faz de nós parte inegável um do outro.

Eu nunca poderia estar numa relação sem trair. Ele também não. Precisámos de abrir espaço para amarmos os amores um do outro. Não queremos a fidelidade labiríntica de só estarmos nós e as paredes e os becos sem saída. Queremos dormir juntos e levar as nossas paixões para a cama, acordar do sono para o sonho. Acreditar nele. Fazer dele bandeira. Somos um do outro e da nossa arte e da nossa esperança. É impróprio e inadequado, indecoroso e lascivo. Mas é a maneira como devassamente nos propomos, todos os dias, a saber mais sobre o amor. Eu não o quero sem o seu outro amor. Ele não me quer sem o meu. E sabemos melhor do que ninguém que esta é uma traição à norma. Mas nós não amamos a norma. Amamo-nos um ao outro. E à música. E à escrita. Nunca poderíamos estar numa relação sem trair. É por isso que sabemos que seremos sempre fiéis a nós mesmos.

Marina Ferraz
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Os teus pensamentos


Às vezes, gostava de ler os teus pensamentos. Como um livro. Imagino-os escritos, impressos, negros e delineados, nas folhas amarelecidos e gastas dos anos. Imagino-os ondeando por entre o aroma a papel antigo que paira nas alfarrabistas menos conhecidas. Não acho que os teus pensamentos pudessem fazer parte de outras obras. Acho que teriam a idade dessa alma velha que carregas dentro do recipiente jovem do corpo com o qual te encontrei - ou reencontrei,
Quando os teus olhos pousam em mim e eu não te devolvo o olhar, pelo que pensas que nem noto. É nesses momentos que gostava de folhear o teu pensamento. Saber como me vês, se me compreendes, se, secretamente, ponderas também como seria bom poderes ler o meu pensamento.
Não sei com que palavras pintas o retrato do que os teus olhos encontram nesse olhar subtil sobre o meu semblante. Sei como eles brilham. Porque é que brilham? Fico a perguntar se me vês ou se vês somente o retrato do que eu poderia ter sido. Não mereço o brilho dos teus olhos azuis. Mas, Deuses, dava uma vida para conhecer as nuances que te permeiam a mente quando olhas para mim.
Às vezes, gostava de ler os teus pensamentos. Como um livro. Vê-los pontuados com exclamações e interrogações e reticências. Saber os tempos verbais e os complementos - oblíquos ou não - que os atravessam. De os respirar, compassando a leitura com o bater do meu coração caótico e arrítmico.
Talvez os teus pensamentos nem me dessem respostas firmes. Talvez fossem somente o incentivo de cem outras questões. Mas gostava de os ler. Lê-los seria como descobrir a escada para um segredo escondido num lugar distante. Uma consciência sã de que, se chegar a ti, talvez possa perceber-te até ao mais ínfimo grão de poeira.
Olho pela janela. Sinto os teus olhos presos em mim e sei que eles brilham. Não te devolvo o olhar. Deixo que olhes, perdido nesses pensamentos que só tu conheces.
Às vezes, gostava de ler os teus pensamentos. Como um livro. Mas os pensamentos prendem-se em ti e perdem-se no vazio que nos separa. Ignoro-os. Aproximo-me. Bebo do brilho dos teus olhos. Faço dos meus pensamentos som. Digo que te amo. É um pensamento velho, como a tua alma e a minha. Mas nunca fica gasto. E isso é tudo o que importa.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Ninguém



Eu não sou ninguém.
A vítima não era ninguém.
O assassino não era ninguém.
Ninguém é ninguém.
Somos todos o mesmo pedaço amorfo de coisa nenhuma. Mas fizeram-nos acreditar que somos. A todos. A mim. À vítima. Ao assassino. Fizeram-nos acreditar que, de alguma forma, por algum motivo, éramos gente. Criaturas cheias de direitos. Cheias de ideologias. Cheias de frases de boca cheia. Fizeram-nos acreditar. Acreditar que o mundo nos olha como se fossemos alguém. Mas não. Não somos. Somos todos um pedaço amorfo de nada. E, se desaparecêssemos todos, não haveria ninguém para sentir a nossa falta.
Insistem. Todos somos gente. Todos somos alguém. A criação da noção do divino de nós, da nossa unicidade, da nossa importância. Não somos divinos. Nem únicos. Nem importantes. Somos todos pedaços de carne ambulante, a não servir para nada, a servir os interesses uns dos outros, a viver nos interesses dos outros, a ser o interesse dos outros e, além dessa dimensão que nos une a espécie, não somos nada. Nunca vamos ser nada. E somos pior do que nada porque criamos a nossa unicidade na cópia uns dos outros. Não somos nada e não somos originais. Juntamo-nos a grupinhos e ideiazinhas que não passam de mais pedaços de nada na boca de ninguéns. Importantes? Porquê? Quando foi que trouxemos ao mundo algo que importe ao mundo? Trouxemos apenas o que nos importa a nós - os fragmentos de ninguém que povoam o espaço. O mundo foi o que destruímos e continuamos a destruir no processo.
Sim, encheram-nos de noções e de projectos e de supostos objectivos e metas e idealismo. Que bonito! Encheram-nos da noção de que a nossa vida importa. De que as nossas acções importam. De que, seja lá por que for, o "mundo" precisa de nós. É um erro enorme. Somos nós que precisamos do mundo. Do que não é humano. Apenas o que não é humano poderá ser alguma coisa. Mas encheram-nos de medos e medinhos... Vem aí um apocalipse qualquer. E as pessoas temem. A guerra. A profecia. O dia que bate com o mês e o ano. O atentado. E, porque somos ninguém, é difícil perceber a noção mais simples. O mundo não vai acabar. Poderemos acabar nós, os ninguéns, mas o mundo vai sobreviver. E talvez esteja melhor sem nós.
Pondero. E sei que as palavras são duras. Mas digo-as. Fizeram-me acreditar que sou alguém e que sou livre. Sei que não sou. Sei que a liberdade vem com as amarras - não as do mundo - a desta humanidade desumana. E sei que não sou ninguém. Mas fizeram-me acreditar que sim. Por isso escrevo.
O assassino, que agiu em nome da crença, acreditou que era alguém e matou.
A vítima, que era alguém para alguém, filha de alguém, pai de alguém, irmã de alguém, neto de alguém, não é ninguém e morreu.
E eu, que escrevo este texto, não sou ninguém. Não quero ser ninguém. Mato e morro todos os dias. E sou feliz. Porque, de alguma forma, sei que não é o mundo que está errado. O mundo vive. O mundo respira. O mundo não precisa de nós para nada. Somos ninguém. E este mar de preocupação humana é uma partícula minúscula de um mundo maior, é apenas a gaiola de mentiras onde nos prenderam a todos.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Já nos perdemos



Já nos perdemos.
Eu já te perdi. Tu já me perdeste. E, por entre um mundo cheio de acontecimentos e pessoas que se acontecem, pareceu que não mudou nada.
Mas mudou.
Pelas ruas, há quem o diga. Consciência universal, caminhando de boca em boca, passando de mão em mão.
Já nos perdemos. Eu já te perdi. Tu já me perdeste. O mundo inteiro sabe. Toda a gente sabe. Menos tu e eu.
Tu és louco. E eu também. O mundo não. E é por isso que o mundo sabe de nós o que nem mesmo nós soubemos aprender.
Meu amor. É a triste verdade. Já nos perdemos. Eu a ti. Tua  mim. Tu a ti. Eu a mim. Estamos perdidos um do outro e nós mesmos, por entre a confusão das almas que fizemos corpo na entrega dos sentidos. Avançámos demais rumo ao desconhecido que ficava além da pele e do toque e das palavras vazias.
As pessoas não acreditam no amor. E nós sim. Talvez por isso elas saibam que nos perdemos enquanto nós continuamos - ingénuos e inocentes - a aclamar o para sempre, como se ele existisse só para nós.
Não é verdade. Já os perdemos. Eu já te perdi. Tu já me perdeste. E, no mundo inteiro, só não o sabemos nós. Tu e eu. Talvez porque não nos tenhamos perdido apenas um do outro mas também um no outro. Talvez porque vejamos um reflexo de nós no brilho dos olhares devolvidos.
Mas dizem. Ouves? Já nos perdemos. Ontem . Ou hoje. Ou amanhã. Seja como for. Eu já te perdi. Tu já me perdeste. Seja por desânimo ou desamor ou traição ou morte. Já te perdi. Já me perdeste. Já nos perdemos.
A verdade é dura. Magoa. Escondo-me dela. Em ti. No teu abraço. No meu canto.
Perco-me em ti.
Perdeste-te em mim.
Perdemo-nos um no outro.
Não sabemos que nos podemos perder de outra forma.
Somos loucos. Tu e eu. E na bênção desta loucura perdemos a noção. Não parece que possamos quebrar. Não por desânimo. Não por desamor. Não por traição. E a morte que tente. Mas eu não acredito.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

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