terça-feira, 28 de abril de 2015

A (outra) lista


De mãos dadas pela rua. Com os dedos entrelaçados num abraço. Com as almas perdidas e enlaçadas na certeza de um amor que não pode esmorecer. O mundo lá fora pertence-nos e não nos importa. Talvez nos pertença porque não queremos saber dele. Talvez seja essa a razão.
Avançamos. Vamos, cegos de nos vermos um ao outro. Cegos de não vermos além do que fica nos meandros dos olhares partilhados e gastos. Sinto que te pertenço. Sinto que me pertences. Sinto que o sabemos de cor e que não precisamos que mais ninguém o saiba. E os teus olhos. As tuas mãos. O teu calor. A tua perfeição imoderada e insolente, por entre as imperfeições do universo.
Apanhámos, de corrida, o último navio para a Felicidade. Somos os donos do Mundo. Temos biliões de estrelas e podemos reinar sobre as galáxias mais distantes. Damos-lhes nomes eternos, que ficam pendentes na memória e se perdem nos dias que passam. Somos os senhores do Mar e da Lua. Com eles, passamos noites e dias e "para sempres" só nossos.
Caminhamos. Não temos espadas. Nem revólveres. Temos as mãos dadas. E poemas nos olhos que sorriem. Somos mais fortes do que um exército. Temos a força que os Deuses nunca quiseram dar aos Homens. E, no caminho percorrido, deixamos a conquista das ruas que passamos, porque as trilhamos com a certeza irrebatível de que não há maldição, nem guerra, nem tormenta, nem mágoa que possa destruir-nos.
Sou tua. Tu és meu. Somos os donos do mundo. E a lista, outrora feita, enumerada, cheia de exclamações, é agora um papel em branco, onde vamos escrevendo a história de um hoje sem pressa.
A minha lista de desejos não tinha nada de simples. Para nós, eu tinha desejado o Sol que se punha sobre o Mar, o Mar que espelhava as Estrelas, as Estrelas que cintilavam ao longe, no cansaço eterno de morarem na distância. Tinha desejado risos que soassem pelas terras altas e ecoassem em cada vale, cada planície, cada montanha...
Mas, de mãos dadas pela rua. Com os dedos entrelaçados num abraço. Com as almas perdidas e enleadas na certeza de um amor que não pode esmorecer. Compreendo. Gritamos o amor e não precisamos que ninguém ouça. Porque é um grito calado que trazemos em nós. Somos completos, nesse enlaçar de dedos onde abraçámos as almas. E ouvimo-nos melhor nesse silêncio.
Sim. Cumprimos a lista. Temos o Mar. E os pores do Sol. E as palavras ditas, re-ditas, sem a barreira dos pensamentos. Temos as Estrelas. Biliões de Estrelas. E galáxias sem nome, das quais ninguém ouviu falar. Somos os donos do mundo. Mas não somos os donos do mundo por termos Oceanos e Sóis e Palavras e Estrelas e Universos. Somos os donos do mundo porque nos temos um ao outro. Eu sou tua. Tu és meu. O mundo lá fora pertence-nos e não nos importa.
Rasgo a lista de desejos. Somos os donos do mundo. E a felicidade não se enumera.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 21 de abril de 2015

Na avenida dos sorrisos vendidos


Aviso: O texto que se segue contém linguagem forte que pode ser considerada imprópria e/ou obscena.

Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Aprendera a arte do prazer. Não de uma forma subtil e romântica. Não com floreados e delicadezas maiores que o tempo. Não! Sem eufemismos. Ela aprendera que podia viver apenas usando o corpo nu, dando-o, vendendo-o. Aprendera que isso lhe pagava as contas e os vícios. Que lhe saciava as necessidades básicas e os caprichos. Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. E sabia o nome que davam a quem, como ela, batia as esquinas dos bairros. Não se importava.
Há uns tempos, tinha ouvido da boca de uma mulher igual a si: "é porque a vida a isto me obriga". Revirara os olhos e erguera o dedo do meio, enquanto virava costas e se afastava das demonstrações de auto-comiseração. A vida não obrigava ninguém a fazer coisa nenhuma. Muito menos abria uma porta com a indicação "fode ou fode-te". Não era isso que acontecia. As pessoas tinham uma escolha. Faziam a escolha. Tudo certo. Já era tempo de deixar as justificações hediondas sobre como a vida má e o mundo cruel tinham sido estrada para a degradação. "Se todas as pessoas que têm vidas tristes se prostituíssem, estávamos desempregadas", costumava atirar, por entre as conversas. Claro que ninguém gostava de ouvir essas teorias. As pessoas dizem que o livre arbítrio é a melhor coisa dos seres humanos. Mas não naquele meio. Era muito mais fácil achar que se era puta por falta de opção do que admitir que se escolhera sê-lo.
Ela não tinha paciência para limpeza de discurso e justificações vazias. Nem com colegas, nem com clientes. Se calhava um perguntar-lhe, como tantas vezes acontecia, o que a tinha levado àquele caminho, ela respondia sempre o mesmo: "Querido, estás aqui para falar ou para foder?". Eles estavam lá para foder. Ela também. Era uma mera troca de bens de consumo, baseada no corpo. O corpo era o seu instrumento de trabalho. E sim! Dava trabalho! Depilação, ginásio, dieta. Uma constante preocupação. Ser puta era como ser modelo mas com ainda menos roupa e sem edição de imagem.
Não se queixava. Fora escolha sua. Até ao limiar do que loucamente podia ser anunciado. Fora escolha sua. Poderiam, um dia, inscrever isso mesmo na sua lápide: fora escolha sua. Não guardava, sobre a escolha, arrependimentos nem mágoas. Todas as pessoas escolhiam alguma coisa. Ela escolhera duas: a prostituição e a honestidade. E eram duas escolhas válidas, embora parecessem anular-se.
Ela tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Não pensava nele como parte da alma. Não pensava nele como recipiente da alma. Não pensava que tivesse alma. Mas acreditava que, se a tivesse, a sua pureza não seria medida pelo número de corpos que tocavam o seu nem pelo número de leitos onde se estendia e se dedicava ao prazer. Se houvesse alma, ela devia certamente ser medida pelo resto.
As pessoas confundiam, com frequência, o verbo ser e o fazer. Havia uma diferença grande entre ser bom e fazer o bem, tal como havia diferença entre ser puta e viver da prostituição. Mas ela sabia que discutir normas e conceitos sociais era equivalente a tentar prender as ondas na costa. Completamente inútil e estupidamente ilógico. Não as discutindo, optava por pensar nelas. E tinha muitas perguntas onde toda a gente parecia ter respostas. O que é que tornava uma escolha errada? Quando é que a sociedade tinha desprezado os próprios pilares da vida? Onde se guardava a lógica dos tempos que tinham determinado o que era moralmente aceitável e o que era incorrecto?
A noite passava nesses pensamentos. Passava neles, de corrida, até rua se transformar em motéis. E motéis se transformarem em rua. E a manhã vir romper o horizonte para lhe dizer "bom dia".
Na manhã que começava a nascer, iniciava-se o caminho apático das gentes na direcção dos trabalhos. Taciturnas e descontentes, passavam de olhos no chão. Iam sem vontade e sem outro intento que não o da obrigação. Notou que ninguém sorria. "Será que as pessoas têm medo de sorrir?", perguntou-se, enquanto largava o canto e começava o caminho para casa.
Tinha os pés cansados da noite. Mas sorria. E, nas ruas onde passou, entre passeios atolados de pessoas, pessoas atoladas de problemas, problemas atolados de preconceito, compreendeu que era a única a sorrir. "Será que as pessoas têm medo de sorrir?", perguntou-se novamente. Mas, depois, ocorreu-lhe que talvez não fosse medo. Talvez as pessoas vendessem os sorrisos. Talvez fosse esse o preço da sobrevivência. E teve pena delas. Cada uma daquelas pessoas, a vender-se assim, despindo-se de felicidade a troco de dinheiro, de estatuto, de reconhecimento. Sabia quem era. Sabia o que fazia. Tinha feito do corpo um instrumento de trabalho. Mas teve verdadeiramente pena das pessoas que passavam sem sorrir. Teve pena da forma como vendiam os sorrisos a troco de migalhas. Ela prostituía-se... mas não tanto e não por tão pouco.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 14 de abril de 2015

Coração vazio


Nasci com o coração vazio. Preenchê-lo foi a segunda coisa que fiz. Primeiro chorei. Depois enchi-o de alegria. A alegria fez dele um coração mais completo.
Com o coração recheado de alegria, provei os primeiros sabores e senti os primeiros aromas. Apreciei as primeiras texturas. Derreti-me nos primeiros abraços. Com o coração inundado por essa felicidade, dei os primeiros passos. Disse as primeiras palavras. Sofri as primeiras quedas. Com o coração cheio de contentamento, senti o embate dos primeiros sentidos. O desgaste dos primeiros sentimentos. Cultivei as primeiras ilusões. As ilusões trouxeram consigo realidades além da minha. Subitamente, o mundo em meu redor não bastava. A alegria dissipou no centro do horizonte onírico dos meus desejos. O meu coração ficou despojado de tudo.
Tinha o coração vazio pela segunda vez. Nunca gostei do vazio. Preenchê-lo foi a primeira coisa que fiz. Enchi-o de sonhos. Sonhos para hoje. Sonhos para amanhã. Sonhos para um futuro incerto que há-de vir. Os sonhos fizeram dele um coração mais completo.
Com o coração recheado de sonhos, fiz as primeiras experiências. Escrevi as primeiras linhas. Apaixonei-me pela primeira vez. Esse primeiro amor não era pessoa mas palavra. Apaixonei-me pela prosa. Pela poesia. Pelo que podia ser criado no horizonte infinito de uma folha em branco. Com o coração inundado de sonhos, criei as primeiras expetativas. E vi-as defraudadas pela primeira vez. Pela segunda. Pela terceira. Vi os meus sonhos destruídos nas mãos da vida. Nas mãos das pessoas. Nas mãos do tempo, esse traidor sem rosto. Cultivei as primeiras mágoas. Subitamente, os sonhos não bastavam. Lentamente, deterioraram-se em fragmentos. Os seus fragmentos esvoaçaram, fizeram-se poeira. O meu coração ficou despojado de tudo.
Tinha o coração vazio pela terceira vez. Nunca gostei do vazio. Preenchê-lo foi a primeira coisa que fiz. Enchi-o de amor. Não sabia muito bem que podia amar-me. Achava que não. Como podia eu ser merecedora de amor, se tinha já desgastado a alegria e destruído o sonho? Então, no cultivo de um amor ao próprio amor, amei a ideia da alegria que tinha perdido e amei as pessoas que me tinham arrancado os sonhos.
Com o coração recheado de amor, dei-me pela primeira vez. Selei os primeiros beijos. Desatei os primeiros medos. Entrelacei os dedos pela primeira vez. Com o coração envolto na plenitude das paixões, entreguei-me ao prazer. Destruí as primeiras muralhas. Acreditei que o sonho e a felicidade eram um só e se cruzavam na realidade do agora. Criei esperanças maiores do que eu. Senti-as pesar nos ombros e no peito. Vi-as quebrar com amostras de desilusão. Vi o coração esvaziar-se de novo, mais rápido, mais brusco, envolvendo-se nas nuances de desespero.
Tinha o coração vazio pela quarta vez. Nunca gostei do vazio. Mas entendi, finalmente, que talvez devesse gostar. O vazio tem sombras. Se tem sombras é porque existe luz. Compreendi que a sombra da alegria ainda é alegria. Que a sombra do sonho ainda é sonho. Que a sombra do amor ainda é amor. Preencher o coração não foi a primeira coisa que fiz. Primeiro, aprendi a amar as sombras. Depois, aprendi a amar a luz que as cultiva. Preencher o coração, foi a última coisa que fiz. Preenchi o coração com as sombras do vazio. Elas alojaram-se com naturalidade. Preencheram até os recantos que nunca tinham conhecido o toque do sentir. Prenderam-se às suas paredes com raízes de treva e caos. Hoje o coração está cheio. Já não há espaço para mais ninguém. Já não há espaço para mais nada. Fecharam-se as janelas. Nunca mais terei o coração vazio.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 7 de abril de 2015

Uma história


"A imaginação é mais importante que a ciência, porque a ciência é limitada, 
ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro."
- Albert Einstein -

A maioria das histórias começa com "era uma vez". Esta não. Esta começa com o toque insistente do telefone a ecoar nas paredes vazias de uma casa onde já não mora ninguém. E, se houve tempos em que algo existiu para que se dissesse "era uma vez", não foi hoje. Não agora. Não no toque insistente deste telefone que toca sem que vivalma o atenda.
Dentro das paredes nuas da casa onde ecoa o som estridente da ausência, nunca houve história que merecesse ser contada. Nunca houve amor. Nunca houve amizade. Afago. Carinho. Ternura. Talvez tenha havido intrigas. Se as houve, elas foram camufladas e perderam-se, escorrendo ao de leve pelas frestas do soalho velho, que range sozinho, como se fantasmas tristes caminhassem sobre si.
Seria uma boa história para começar com "era uma vez", se houvesse fantasmas. Mas não há. Há tão somente o vento, insistindo contra as traves de madeira velha, assobiando baixinho, qual viúva carpideira de outras eras. E talvez, por entre as notas agudas do seu eterno sopro, ele traga os fantasmas etéreos do passado. Mas não importa. O telefone toca. O som ecoa. O vento, embora responda, não pode atender.
No pó que se acumula sobre a mobília, repousa a memória do vazio. Um vazio que, obviamente, o telefone não conhece. Porque toca. Ainda. De novo. Outra vez. Não há passos que corram na sua direcção, nem mãos que se estendam num ímpeto voraz.
Talvez pudesse começar por "era uma vez" a história da pessoa que insiste em ligar para a casa vazia onde já ninguém mora. Ou a história de quem deixou o telefone ligado, no abandono da vida. Mas não merece esse começo a história do vazio. O vazio é apenas isso. Sem que, noutros tempos, noutra dimensão, noutro modo se encontre o incentivo para dizer que algo aconteceu. O vazio é apenas isso. E a pessoa que insiste em ligar, tal como aquela que morreu sem que ninguém se lembrasse de desligar o telefone são apenas a memória apagada nas paredes vazias, soterradas sob a camada densa de pó. Se ninguém disser delas "era uma vez", em breve serão também vazio. Serão absorvidas por ele, condenadas a desaparecer neste pedaço de papel onde não há espaço para começar histórias com conteúdo.
Esta história não começa com "era uma vez". Começa com o toque insistente do telefone a ecoar nas paredes vazias de uma casa onde já não mora ninguém. E, como não há quem more nela, a história acaba como começa. O telefone toca. Ninguém atende. Porque é que ninguém atende? Porque é que a casa está vazia? Porque é que alguém insiste em ligar, se não há quem responda?
Nenhum de nós sabe e, de alguma forma, sabemos todos a resposta. Estamos certos de saber. Ficamos todos na sala a olhar para o telefone que toca, ainda não estejamos lá. Imaginamos. Não precisamos que nos digam nada. Sabemos que a casa está vazia e que o telefone toca. Apenas isso. E, a maravilha é esta: Subitamente, cada um de nós tem uma história que merece começar com "era uma vez"...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet