quarta-feira, 25 de junho de 2014

O herói do videojogo


Vesti a minha capa. Embainhei a espada. Agarrei nos mantimentos, nas poções, nos artefactos. Montei o meu cavalo e pus-me a caminho. Não sei onde vou. Não importa. O que importa é isto: aqui, não me podem ferir.
Sou um cavaleiro no centro de uma cruzada só minha. E, se pelo caminho alguém me ataca, deixo brandir a espada. Espeto-a no centro dos corações maléficos de quem me quer mal. Tenho uma missão e uma vida que faz sentido. Finalmente.
No meu caminho, já me fiz herói mais vezes do que aquelas em que me fiz vilão. Salvei donzelas em perigo; salvei pedintes e mendigos; salvei gente deste povo que é o meu. E, se na viagem deitei ao chão, a esvair-se em sangue, quem oprimia essas gentes, não me arrependo. Porque há gente assim em todos os lugares. Há gente má em todos os lugares. Mas aqui? Aqui eu posso fazer algo sobre isso.
Talvez se riam de mim, mas é verdade. Aqui não me podem magoar. Tenho poderes e força. Tenho outra vida, se esta me falhar. Aqui não podem fazer nada que arranque de mim o que eu sou, o que eu tenho, o que eu quero. Este é o lugar onde o meu nome causa medo aos que são pobres de espírito. Porque esses sabem que eu vou chegar para salvar o dia, o mundo... porque eles sabem que, independentemente do quanto façam, eu acabarei por vencer.
Noutro lugar, um lugar que imagino como ficção, eu sou apenas um rapaz. Franzino, com sardas no nariz e óculos demasiado grossos. E, nesse lugar, atiram-me os livros ao chão, empurram-me contra os cacifos, ameaçam-me, roubam-me e dizem que, se for preciso, me matam. Sou um cavaleiro, aqui. Mas lá? Lá, sou a pessoa que chega com feridas a casa... Nessa minha ficção, costumava querer chegar a casa e procurar consolo nos braços da minha mãe ou do meu pai. Mas eu cresci, o meu pai saiu um dia e não voltou e a minha mãe está sempre num trabalho ou outro. Habituei-me a tratar as minhas feridas e as minhas nódoas negras, nesse mundo de ficção. Mas isso foi até conhecer a realidade. E a realidade é aqui.
A realidade é que sou um cavaleiro no centro de uma cruzada só minha. E que ando por aí, a lutar por um mundo melhor. Sou invencível. E, nesta minha realidade, faço feitiços que aprendo nas ruas e espalho riquezas que encontro por aí. E, por ser esta a vida que escolho, visto a minha capa, embainho a espada, agarro nos mantimentos, nas poções, nos artefactos. Monto o meu cavalo e ponho-me a caminho. Não me podem ferir.
E, de volta em vez, acordando-me desta realidade, a minha mãe entra no quarto, com um ar ensonado, e diz-me para largar os jogos e viver a vida lá fora. Mas eu não vou. Para que hei-de ser menino se posso ser herói? Para que hei-de ser fraco se posso ser forte? Esta é a minha realidade. Gosto dela. Aqui, não me podem ferir...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de junho de 2014

Desculpa


Já pediste desculpa, eu ouvi. Não me tomes o silêncio por surdez. Desculpa? Para que queres tu o meu perdão?
Pedes desculpa pelo erro, pela mágoa que ele provocou, pela alma que feriu. Desculpa. Mas as desculpas somam-se e a palavra encadeia-se nelas. Desculpa. Vivemos nessa Era, a Era da desculpa. É mais simples dizer uma palavra do que agir corretamente. Desculpa mas não aceito. Desculpa.
E continuas aí, porque  é fácil pedir perdão. É só dizer essa palavra: desculpa. É assim que se corrige magicamente cada erro. Mesmo o mais indesculpável. E cansa-me ouvir a palavra. Essa palavra. Desculpa.
O meu mundo foi feito assim: com justificações e mentiras e desculpas. Já ninguém tenta ser melhor. Já ninguém busca alcançar o que fica depois da desistência. Desculpa. A palavra veio dar perdão a tantos quantos não querem o suficiente e não tentam o bastante.
No mundo, somam-se as desculpas onde não houve tempo perdido, esforço empenhado ou força de vontade. Não há motivação nem desejo de fazer melhor. Mas há a desculpa. Há a desculpa e essa palavra basta.
Tu repetes a palavra. Já ouvi! Mas ensurdecem-me os lábios na demanda pela vontade de te perdoar. E a vontade não vem porque a tua desculpa é vazia de arrependimento. Porque essa palavra, essa palavra fria e tenebrosa podia ter sido evitada.
Desculpa. Não queiras o meu perdão. Ele seria tão seco e vazio como esse pedido que me fazes. Não posso perdoar as tuas escolhas nem os teus erros. Não posso fingir que não sabias que assim seria quando escolheste pedir desculpa depois.
Desculpa. Não posso perdoar-te. Não posso ouvir-te a palavra em repetição e ignorar o eco que ela faz no seu próprio vazio. Não consigo. Desculpa.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Como tu


Se todas as pessoas do mundo fossem como tu. Imagina um mundo assim. Se todas as pessoas soubessem que há algo além dos limites pequeninos do nosso corpo, do nosso país, do nosso mundo. Se todas as pessoas apontassem para esse algo, com entusiasmo em vez de medo e dissessem, com ânimo, "talvez um dia". Se todas as pessoas do mundo fossem como tu, o mundo seria maior. Não estaria confinado ao espaço desta Terra estanque. Iria além da nossa rua e além do sol. O nosso mundo seria o Universo e outros universos, ainda por conhecer. O mundo não seria nada pequeno, se todas as pessoas fossem como tu.
Se todas as pessoas do mundo fossem como tu. Imagina um mundo assim. Se todas as pessoas soubessem ver por dentro de si mesmas o que é bom e o que não é e escolhessem apenas o melhor de si para dar aos outros. Se todas as pessoas respirassem fundo, antes de falar, e limpassem o negro dos pensamentos, para dizerem apenas luz, sem encherem de sombras os recantos dos corações alheios. Imagina. Se todas as pessoas do mundo fossem como tu, o mundo seria melhor. Não estaria preso à pequenez das vozes que se erguem sem ponderação. Iria além das palavras impensadas e dos pensamentos fúteis. O nosso mundo seria feito de bondade e de confiança. O mundo não seria nada triste se todas as pessoas fossem como tu.
Se todas as pessoas do mundo fossem como tu. Imagina um mundo assim. Se todas as pessoas soubessem que a palavra amor diz mais do que as quatro letras que tem, mais do que a respiração, mais do que a vida. Se todas as pessoas agarrassem esse sentimento entre os dedos e o usassem bem, se o dessem à pessoa certa, se não se esgotassem em migalhas pequeninas de não-amores. Se todas as pessoas do mundo fossem como tu, o mundo exalaria amor e paixão e carinho, o mundo seria de todas as cores do arco-íris. Imagina. O amor seria real, os corpos dar-se-iam em vez de se emprestarem, as mãos fariam elos que valeriam mais do que mil contratos. Imagina. O mundo não seria nada vazio se todas as pessoas fossem como tu.
Soa a perfeição. Se todas as pessoas do mundo fossem como tu, não haveria pobreza nas ruas nem miséria nas almas. Haveria sorrisos. Haveria palavras de contentamento, palavras de incentivo. Haveria gente a andar a par junto às lagoas da vida. Imagina. Imagina um mundo onde todas as pessoas fossem como tu.
Se todas as pessoas do mundo fossem como tu. Eis um mundo em que escolheria viver, de pés no chão e cabeça nos sonhos, sem ter medo de nada. Se toda a gente fosse como tu, não haveria nada que não valesse a pena... mas, acredita em mim... Mesmo nesse mundo onde toda a gente fosse como tu e a felicidade se anunciasse, eu ainda te saberia único. Mesmo que fossem como tu, as pessoas não seriam quem tu és. Por isso, mesmo nesse mundo perfeito, era contigo que eu quereria estar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 2 de junho de 2014



Já me dei e já me perdi. Já fui pressa magoada e calma sem sentido. Já procurei respostas por entre interrogações. Caí. Levantei-me. Fui guerreira às vezes mas também já me sentei à espera de ser salva.

Já fui minha, já fui dos outros. Já vendi ideias ao preço da desilusão e do abandono. Nunca fui perfeita mas já fui suficiente: suficientemente magoada, suficientemente usada, suficientemente abandonada  por aqueles que esperavam de mim a perfeição que eu nunca tive.

Já fui sombra. Já fui sol. Já fui nuvem. E já me construí em Invernos, Primaveras e Verões, sempre à espera do Outono que nunca veio para me roubar a respiração.

Já fui única. Ser única significava ser só. Por isso, no caminho, cheguei a ser igual a todos os outros. Mas fiquei vazia. Vazia de me dar e me vender às teorias e opiniões daqueles que diziam que me compreendiam os traços desiguais da alma.

Já fui além do que fica depois da mágoa e já fui quem chora e grita. Quem esperneia e amua. Porque já conheci o fundo ao poço entre as promessas de céu.

Já olhei as estrelas mas nunca agarrei nenhuma entre os dedos. Já abri as asas mas nunca voei. Fui sendo o que já sabia ser porque o céu assusta quem vive no escuro e eu já fui filha das trevas.

Já fui muitas coisas. Já fui quem queria ser. Já fui quem não queria. Já fui quem os outros quiseram que eu fosse. Já fui menina. Já fui mulher. Já fui tudo ao mesmo tempo, numa explosão de confusão e sentidos e já fui o nada que se encosta à espera do futuro, sem acreditar que ele traga algo melhor.

Já fui eu comigo. Já fui eu sem mim. Já fui todo este universo de coisas e de momentos. O que ainda não fui fica guardado nos dedos de uma mão, escasso e desbotado.

Já fui muitas coisas. Mas ainda não fui eu contigo. E penso que é por isso que também ainda não fui feliz...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet