terça-feira, 25 de março de 2014

Casa da Sorte

Foto de Roberta Avillez


Toquei o azar às portas da casa da sorte. Mas as pessoas não ouviram. Passaram por aí, como passa o tempo. Passando. Na inevitabilidade infalível de quem pensa que não existe outra forma de passar. Com a indiferença de olhos postos no asfalto ou nas pedras sujas do chão.

Toquei. Toquei mas a música não encheu as ruas, demasiado atulhadas de coisa nenhuma. Por isso, embora tocasse, não tocava. Não toquei ninguém nem coisa alguma. Não havia espaço nas ruas para outro som que não o da apatia.

Toquei o azar às portas da casa da sorte. Alguns passaram. Alguns entraram. Alguns chocalharam nos bolsos uma pobreza igual à minha. Alguns iam vazios. Alguns iam cheios de nada. Outros cheios de si. Mas ninguém me ouviu. Eu era da cor das paredes, da cor do chão. E, embora tocasse, eu soava a nada porque ninguém parava para ouvir. Para me ouvir. Para se ouvir. As pessoas simplesmente passavam. Assim... passando. Haverá outra forma?

Toquei. E, embora os olhares de soslaio optasse por ser cegos, eu continuei a tocar. Chamaram-me mendigo, pedinte. Ouvi o rumor: "devia arranjar trabalho". Toquei. Apesar dos rumores e da indiferença e da surdez. Toquei para as pedras da calçada. Chamei-lhes irmãs. Toquei para elas porque apenas elas me conheciam a música e o destino de não ser mais do que pisado pela multidão alheia.

Toquei. Toquei o azar às portas da casa da sorte. As mãos dormentes do frio. A alma dormente da indiferença. As pessoas dormentes, não sei porquê. E, nas ruas cheias, pessoas vazias passavam, deixando-me aos pés o estojo vazio e o coração quebrado.

Olhando para as pessoas, senti o ímpeto de tocar para sempre. De tocar até que me ouvissem. De ficar ali até os dedos congelarem, entre sopros e o meu olhar vítreo virar pedra, calcificar.

E toquei. Toquei a dor e a amargura e o desespero nas ruas onde só passava, passando, quem não podia ouvir ou entender o que não ouvia. Toquei enquanto a música ecoava no  vazio de tanta gente. Toquei enquanto a rua se enchia de vazio e se esvaziava de novo.

Era noite. Toquei para as estrelas. Toquei para a lua. Toquei o azar às portas da casa da sorte.
As ruas vazias, onde pessoas vazias já não estavam. O estojo vazio. O estômago vazio. O sonho vazio de mim.

Arrumei as minhas coisas. Arrumei o sonho. Arrumei a esperança. Arrumei as gentes que povoavam as ruas. Tinha tocado o azar às portas da casa da sorte.

De meu, levava agora a música. E o estojo vazio, os bolsos vazios, o estômago vazio. Mas sorri. Não tenho a alma vazia, nem os olhos cegos, nem vou como o tempo, andando. Há estrelas no alto. E elas ouvem até quem toca o azar às portas da casa da sorte.

Marina Ferraz

segunda-feira, 17 de março de 2014

Deixa-me



Deixa-me ser feliz. Não digas, por aí, que as minhas paixões são loucura. Se não te serviu o meu amor, deixa ao menos que o viva da minha forma e em paz. Não me faças entristecer por entre palavras duras que não fiz por merecer. Se não te importas, deixa-me ser feliz.
Se a minha forma de ser feliz for de lágrimas nos olhos, não me combatas as lágrimas. E, se sou feliz por entre o verde de uma Natureza viva, não critiques o facto de eu falar com as árvores. Se sou feliz em textos que falam de amores perdidos e pessoas cruéis, não me peças que escreva sobre as maravilhas da humanidade. Se sou feliz entre monstros e fantasmas do passado, deixa-me ser... deixa-me ser feliz.
Eu não nasci para ser feliz como os outros. Não nasci para diálogos de imortalidade nem para desejar contas cheias e alma vazia. Eu não nasci para me colar às paredes da normalidade. Nasci para dançar livre, sobre soalhos de loucura. Deixa-me ser como sou. Deixa-me ser triste à minha maneira. Sou mais feliz assim.
Não te acuso da minha infelicidade. Fui feliz contigo. Ser feliz sem ti foi uma batalha de sensações e de sentidos, na qual a escuridão ganhou. Sem ver mais do que o negrume da noite e o império das trevas, deixei-me afundar nos abismos. Mas, acredita: é possível amar a noite e as trevas e os abismos. Talvez seja loucura amá-los. Mas, se não entendes, ao menos deixa-me ser feliz dentro de mim. Prefiro a minha escuridão à luz dos outros. Na minha escuridão brilho o bastante.
Se não me entendes, se não concordas comigo, se não achas que o meu caminho esteja certo, guarda para ti as palavras. Não estás aqui para me fazer feliz mas deixa-me... deixa-me ser feliz.
Preciso que compreendas. O abandono deixa marcas. A saudade deixa marcas. A mentira deixa marcas. E é difícil celebrar a vida de uma forma comum e leviana quando já nos abandonaram. Mas há outras formas de ser feliz. Esta é a minha. Não me atires palavras duras ao rosto e olhares reprovadores às costas. Se não te importares, deixa-me ser feliz...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 10 de março de 2014

Poetas (por aí)



"É querer abraçar-te, não podendo com os braços, com palavras." (Helder Godinho)

Andam por aí poetas. Passam por nós nas ruas. Frequentam os nossos cafés. Lêem os mesmos jornais. Têm empregos, como nós. E carregam as palavras às costas, invisíveis, qual saco de memórias fragmentadas, à procura de lugar para viver.
Andam por aí poetas. Passam à nossa porta. Às vezes batem. Às vezes convidamo-los a entrar. Têm mentes despertas e conturbadas. Têm sede de saber e pensam em rimas soltas de versos que nem o são. E, às vezes, dizem em voz alta poemas inteiros que tomamos por conversas naturais. Mas não o são. Nunca o são.
Caminhando pelas ruas onde nos fazemos gente, os poetas enlouquecem no devaneio das horas. Não sabem se alguém os ouve. Não sabem se alguém poderia alguma vez ouvi-los. Mas vão cantando as suas estrofes de ferro, inquebráveis e cheias de mágoa. Às vezes, nem as escrevem. Às vezes nem as dizem. Apenas as pensam. E ninguém lhes rasga o corpo em busca dessa loucura inconstante que fica além da barreira.
Andam por aí poetas. Aparentemente, não são diferentes de nenhuma das outras pessoas. Parecem normais. Sãos. Pessoas. Mas, na verdade, são os mendigos da arte. São os estudiosos do medo. São os indigentes do tempo. E, dentro das suas cabeças, há mais do que listas de compras e problemas quotidianos. Preocupam-se com os sentimentos, com os sentidos, com as emoções. Listam soluções. Tentam salvar os mundos. O nosso e os deles, tão maiores, tão mais cheios, tão mais completos.
Andam por aí poetas. Não os vemos, de os olhar. Não os entendemos, de os ouvir. Mas eles andam aí. E apaixonam-se, facilmente, por outros poetas, cujos corações, igualmente quebrados pela mágoa dos pensamentos dispersos, se quebram a tempo de se emendarem em conjunto.
Andam por aí poetas. Não os sabemos poetas. Muitas vezes, eles não se sabem poetas. Escrevem poesia sem rima nem verso. Escrevem poesia que não se escreve. Dizem a coisa certa, no momento certo ou no errado, porque não têm medo das palavras... E ouvimos, (quantas vezes em silêncio?!) sem sabermos que a poesia que cantam é a mesma que ecoa dentro de nós.
Andam por aí poetas. E, às vezes, não podendo abraçar os corpos, eles abraçam as almas, dão as palavras, os sentidos, as razões... Não os vemos e não sabemos quem eles são. Têm forma de gente e vidas iguais à nossa.... Não os notamos. Mas, quem por eles é tocado sabe: sabe que andam por aí poetas... e que é por isso que o mundo ainda tem algo de bom.

Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet


segunda-feira, 3 de março de 2014

Fada


Ergui os braços aos céus e rodopiei, com os pés assentes na areia húmida e fria. No céu cintilava um universo de estrelas e a lua reflectia, incompleta e crescente, no alvoroço de um oceano feito em lágrimas.
Não fiz caso das pessoas que passavam na rua, de sobrolho franzido, amaldiçoando o Inverno. E, talvez por isso, de alguma forma, elas também não perderam tempo a olhar para mim: criança adulta ou mulher inocente, dançando ao som das ondas. Feliz, completa. Tão, tão feliz.
A memória inconstante chegava e partia como as ondas, firmes e difusas, em marés de saudade. E o vento, vindo desse Norte agreste, veio dançar comigo, trazendo o aroma adocicado de terras distantes.
Um dia disseste-me para abrir as asas. Para as abrir com a simplicidade de ser eu. E isso significava que sabias que eu podia voar. Hoje danço, porque compreendi a verdade. Tive sempre as asas abertas, da mesma forma que te tive sempre, qual corrente de aço, agarrada aos pés. Com o tempo deixei de precisar de voar. Acorrentada à saudade, à solidão, ao medo, à dor… a todos esses sentimentos que deixam de ser tristes e me acolheram nos braços.
Antes, fiz da dor o meu Abrigo. Mas hoje danço. Ergo os braços aos céus e mergulho os pés na água fria do oceano. Danço. Danço de asas abertas e sem temor. Já não te tenho, qual grilhetas pesando. Tenho apenas as memórias sólidas e concretas. Distantes... desertas de ti.
E, rodopiando, de asas abertas, dou por mim a subir aos céus de possibilidades que nem sabia que havia em mim. Descubro que há uma beleza subtil na alma que julgava que não tinha. Descubro que o lugar vazio de onde arranquei o coração foi de súbito preenchido pela certeza de que poderei sempre amar. Talvez não ame da mesma forma. Mas posso amar com a mesma força, o mesmo alento, a mesma paixão. Posso amar tanto quanto o amor diz.
Fada de Inverno num conto misterioso chamado vida, descubro voando que viverei sempre na paz de ter cumprido todas as promessas que te fiz. Na paz de saber que não espero nem desejo que cumpras a tua.
De asas abertas, e sem olhar o chão distante, descubro que vale a pena ser a pessoa que ama, apesar da mágoa. Mesmo que não resulte. Mesmo que magoe. Vale a pena ser a pessoa cujo coração bate, cuja alma permanece intacta, cujos sentidos permanecem sólidos.
Esperei. Julguei que era por ti. Não era. Esperei pelas asas. Esperei por abrir as asas. E hoje sei que valeu o medo, o sofrimento, a mágoa. O mundo é mais bonito visto do alto... e só pode ter asas quem tem coração.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet




Aproveito para deixar uma nota sobre a minha participação, enquanto autora, no Festival da Canção '14, cuja semi-final, a 8 de Março, será transmitida pela RTP. 
Sou a autora da letra da canção nº 4, "Mais para dar" (composta por Helder Godinho e interpretada por Carla Ribeiro). Não deixem de ver, ouvir e de votar em nós! Qualquer voto é fundamental para nos ajudar a chegar à final de 15 de Março. Uma só chamada pode fazer a diferença! :)