terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um sorriso



Ela entrou na sala. Trazia uma saia azul escura e uma camisola branca, já meio gasta do uso. À primeira vista não era diferente de ninguém. O cabelo louro esvoaçava-lhe nos passos e o corpo de bailarina dançava levemente, por si só, com a naturalidade óbvia de quem não o faz por querer. À primeira vista era apenas mais uma, como tantas. À primeira vista não passava de uma menina bonita, demasiado nova para saber o que é o sofrimento, demasiado velha para ser chamada de criança. Mas, então, ela sorriu. Um sorriso aberto, num semicerrar de olhos. E o meu mundo iluminou-se.
 Não é uma história muito longa. É simplesmente um momento, captado na memória, qual fotografia. É a história do sorriso que marcou uma vida. A minha vida. A história de como uma menina se tornou eternamente parte do meu coração e me move, sem esforço, na direção do para sempre.
Ela entrou na sala. Foi tão simples como um passo que a pôs ao alcance dos meus olhos. Tão natural como uma brisa de Primavera a agitar as folhas das árvores. Mas bastou. Bastou isso para me fazer sorrir. Bastou isso para apagar as mágoas e me dar um pouco de paz.
É a mais pura das verdades: à primeira vista ela é apenas mais uma menina. À primeira vista é a criança loura, de olhos azul esverdeados e passos dançantes. Mas eu parei para olhar melhor e descobri a verdade. Ela é o sorriso atrás das lágrimas. A fé no fim da esperança. A luz por entre as trevas. A mão que nos segura na beira do abismo. Ela é a segurança entre os medos. A força nos momentos de desespero. O abraço quando chega a solidão.
Ela entrou na sala. Caminhou em passos dançados. Sorriu-me. Arrebatou-me. E mesmo que, à primeira vista, ela seja apenas uma menina, para mim ela é perfeita. Então, encho-me de luz e de carinho e abraço-a, como se os meus braços pudessem criar uma muralha e protegê-la a vida inteira. Como se num abraço a pudesse salvar de tudo. Mas fica sempre aquela pontinha de certeza que se alastra no peito, qual veneno bom: poderei não ser capaz de a proteger de todos os males do mundo mas ela protege-me a mim e, entrando na sala a sorrir, sem sequer o saber, ela salva-me a vida todos os dias.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 20 de outubro de 2012

A minha história



Se um dia alguém contasse a minha história, traço a traço, sem mentiras, sem nuances cor-de-rosa, então a minha história não seria uma história para todos. Seria um romance daqueles que ficam num canto poeirento da livraria porque ninguém compra o que não compreende.

Se um dia alguém contasse a minha história, diria talvez que fui a princesa da gaiola dourada, educada para ser tudo o que não fui, criada para seguir todos os trilhos que não segui.

Diriam, talvez, que sonhei demais, amei demais, chorei demais. Diriam que a minha vida foi feita na suavidade do exagero. Que nunca aprendi a viver de meios termos ou meios amores. Diriam que isso me matou, no alvorecer de uma Primavera e que tudo o que veio depois foi fragmento de uma morte em vida.

Se um dia contassem a minha história, a verdade da minha história, diriam que me apaixonei pela dor e que lhe dediquei, não só mil poemas, mas também a vida. Diriam que fugi, em encontros com o acaso, uma ou outra vez, para me perder nos braços da felicidade. Diriam que a felicidade fugia de mim, que eu fugia dessa fuga e que, por entre os becos do desencontro, acabámos por nunca passar muito tempo juntas.

Se um dia alguém contasse a minha história, traço a traço, sem mentiras, a minha história não seria sobre uma menina sonhadora, nem sobre uma mulher que a vida tornou forte. Esse romance versaria sobre as minhas mãos. As mãos que um dia pararam para escrever e para acarinharem as parcas pessoas que me conquistaram. Esse romance contaria que as minhas mãos se fecharam noutras mãos, que limparam lágrimas de rostos tristes e que se ergueram aos céus para invocar poderes maiores do que aqueles que a maioria entende. Contaria que as minhas mãos cruas e cruéis se fecharam em punho contra paredes de mágoa e lutaram mil batalhas apenas para perderem a guerra. Esse romance diria que as minhas mãos seguraram o meu coração na ponta da caneta e que isso me fez quem fui.

A minha história não seria para todos. E por isso não será escrita. Não será contada. Ninguém a saberá. Mas eu vou dizer-vos um segredo. Sim, eu sou escritora e falo muito sobre dor. Posso dizer que passei a minha vida a fazer isso mesmo: a dissecar cada pedacinho de sofrimento e a escrever sobre ele obsessivamente. Mas isso não significa que não dói! Significa apenas que as palavras, mesmo as mais duras, continuam a doer menos do que o silêncio. E que, talvez por fraqueza, não sou capaz de dar a mim mesma esses silêncios de papel. Então escrevo, por mais que doa!

Essa dor não é entendida e não fará parte de um romance sobre mim ou as minhas mãos. Essa dor vai viver comigo. Caminhar pelos meus dedos irrequietos e dormentes. Virar poesia e prosa. E, quando o tempo for certo, essa dor vai partilhar comigo a morte e vai voar pelo vento sobre uma ferida de pedra que contará, em silêncio, esta história pela eternidade…


Marina Ferraz
*Imagem retirada da  Internet

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Gaivota



Voa, gaivota, ao redor da minha ferida. O meu veleiro naufragou. As ondas engoliram a esperança alada do horizonte. Olhando, há apenas nevoeiro. Mas voa, gaivota.
Voa sobre o penedo da solidão escarpada. Sobre a areia do meu choro amargo. Sobre a solidão de mais um amanhã vazio.
Voa sobre o meu corpo de terra despida. Sobre as nuvens do meu olhar, onde há dilúvios sem fim à vista.
Voa, gaivota. Circunda no teu voo a ausência de mim. A ausência que é ser corpo sem alma a vaguear por desertos de vento. Voa dentro do meu peito, planando no sopro frio de uma morte que tarda. Mas voa, gaivota.
Voa, gaivota, junto às palavras que se sucedem e às ilusões que ficam intactas em mim. Voa na incerteza dos meus passos. Voa sobre a decadência da minha vontade, sobre a incoerência do meu pensamento.
Voa, gaivota. Sobrevoa o mundo. Este mundo que me destruiu até eu não ser mais do que um fantasma de mim. Este mundo que me atirou ao chão e me obrigou a cair tão fundo de costas direitas e rosto erguido. Voa sobre os vales e as praias. Sobre as casas imundas e as pessoas vazias e cinzentas. Voa.
Voa gaivota. Pescadores vão dizer que és presságio de chuva. Meninas apaixonadas vão sorrir ao ver-te em voo raso no caminho para casa. Milhares de pessoas vão passar indiferentes à tua dança eterna.
Mas voa, gaivota. Voa. Voa alto. Voa bem. Voa dentro deste peito quebrado. E, quando vier a tempestade e eu chorar, deixa as asas repousarem de mansinho no centro deste coração despenhado que, entre o desespero da vida e a ânsia da morte, tem apenas como certo o destino. Um destino de pedra e prata que lhe diz que, ao contrário de ti, ele nunca mais vai voar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Pessoas




As pessoas vão dizer-te que não és capaz. Que te falta alguma coisa. Que não basta. Que há um milhão de pessoas no mundo iguais a ti. Melhores do que tu. Mais focadas, mais exigentes consigo mesmas, mais perfeitas.

As pessoas vão dizer-te que nasceste no país errado. No continente errado. No mundo errado. Que não podes escalar as hierarquias nem definir outras regras. Que tens de te conformar com a realidade. Vão usar as palavras “acorda” e “põe os pés na terra”, como se acordar fosse bom e ter os pés na terra implique que não possas ter a cabeça num mundo de sonhos.

As pessoas vão empurrar-te de opinião em opinião. Vão atirar-te de regra em regra. Vão arrastar-te pelo chão rugoso das suas próprias vontades.

Não duvides. As pessoas vão magoar-te, usar-te, torturar-te. Vão tentar matar-te os sonhos, o sorriso, a vontade de lutar. E tu vais chorar, gritar, resmungar aos ventos a injustiça da vida, como se ela não fosse óbvia e inevitável.

Entende: o mundo não existe numa realidade só. O mundo tem milhões de olhares. Milhões de pensamentos. E todos eles um dia sentiram a injustiça. Todos eles um dia sentiram a dor. Talvez não a mesma dor que tu ou o mesmo sentido de errado, mas uma dor tão válida como a tua.

Por isso, as pessoas vão dizer-te para acordares do sonho e viveres a realidade. Tu não as vais entender. Algumas farão isso por maldade, por inveja, por necessidade de se sentirem superiores. Outras estarão apenas a tentar proteger-te da frieza do mundo, dizendo-te, de forma dura e directa, as lições que aprenderam à custa de muitas quedas. E todas essas pessoas vão soar cruéis aos teus ouvidos. Perceberás com o tempo que dói de pior forma quando as palavras proferidas são ditas por quem se ama mais.

As pessoas. Esses bichos de florestas de betão, sem outro Deus que não a ciência, sem outro sonho que não o dinheiro. As pessoas. Essas vítimas que nasceram por entre as outras e perderam sonhos mais válidos pelo caminho. As pessoas vão dizer-te para cresceres e entenderes que não podes ser quem queres, como queres, aonde queres.

Eu não posso proteger-te das palavras. Não posso dizer-te que não vais ouvir discursos de eternidade sobre o abismo. Não posso prometer que não vais cair no erro de te quedares nas opiniões alheias. Mas deixo-te isto: vou sonhar contigo, enquanto sonhares. Acreditar contigo, enquanto acreditares. Estar lá para te dizer que também caí na crueldade da vida e que isso não me afastou da convicção de que desejar algo é o primeiro passo.

As pessoas vão magoar-te. Vão usar balas de palavras, de desprezo, de autoridade. E, embora eu não possa mudar isto, posso prometer-te que, venha o que vier, eu não serei uma dessas pessoas.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Copo de água



Para o meu avô

A noite caía e, sentada sobre a cama, a menina chamava. Tinha os caracóis revoltos caídos pelo rosto e o jeito certo de quem julga saber tudo sobre o mundo e a vida. A certeza errada de que teria cinco ou seis anos para sempre e de que jamais deixaria de poder chamar por alguém, durante a noite, fosse por que motivo fosse.
A noite caía e a luz desligava-se sempre dois segundos antes da menina gritar, a plenos pulmões. “Trazes-me um copo de água?” E ouviam-se os passos, no corredor, sempre certos e convictos, carregando muito mais amor do que água dentro do copo. E, com o copo de amor, vinha um sorriso de verdade e um beijo de boa noite.
Então, em matando a sede de água e de carinho, a menina deixava a cabeça cair na almofada e dormia. O amanhã era a promessa de todas as coisas. A promessa de muitos copos com água, trazidos em bandejas de sorriso.
Houve muitos dias e muitas noites feitos em pedidos e em copos de água. E muito mais sorrisos entregues com a simpatia de um semicerrar de olhos. Mas as noites sucedem-se e as meninas crescem, para aprenderem que, um dia, não poderão gritar para pedir um copo de água antes de dormir.
Eu sei que já não sou essa menina. Sei-o bem. Mas, mesmo assim, quando a noite cai, ainda me sento na cama e fecho os olhos, para acordar a memória desse tempo em que podia gritar por alguém. Fecho os olhos para orar por um futuro no qual a minha alma seja livre de encontrar a alma de quem partiu. Fecho os olhos para ver, na escuridão do pensamento, o rosto que sorria ao entregar-me um copo de água e muitas medidas de amor incondicional.
“Trazes-me um copo de água?”. A pergunta fica no ar. Sem resposta. Sem passos no corredor. Sem um beijo de boa noite. Mas estás aqui. Mesmo sem me trazeres um copo com água. Mesmo sem entrares pela porta com um sorriso. Estás aqui porque, todas as noites, eu finjo, para mim mesma, que sou criança outra vez. E, na minha imaginação, entras pela porta do meu pensamento e preenches a saudade com mais um copo de amor. E é esse copo inventado que me adormece na ilusão de que nem a morte te pôde roubar de mim.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet