sábado, 22 de setembro de 2012

Seis



Seis. Seis olhos cansados. Os meus, os da minha alma e os do meu coração. Seis olhos cansados de verem a verdade e de se iludirem com as cores mais ténues da fantasia.
Seis. Seis mãos cansadas. As minhas, as das minhas dúvidas e as das minhas ilusões. Seis mãos que querem dar-se a outras mãos mas se mantém abertas, recebendo a esmola dos tempos, como se bastasse.
Seis. Seis sentidos abertos e profundos. Cada um deles atento e indiferente. Ver, ouvir, sentir, cheirar, saborear e saber. Saber profundamente o desfecho de histórias sem começo, no silêncio imediato de quem mede a vida sem pesos e medidas definidos.
Seis. Seis vidas cruzadas por duas pessoas em mil momentos. Seis crenças a rasgar a alma onde se acumulam seis eternidades cruas.
Seis. Seis respirações descompassadas em seis batidas fúteis do coração que só o coração não nota.
Fecho os olhos. Fecho os olhos à batida certeira do relógio no passar das seis. Fecho os olhos e sussurro baixinho palavras que ninguém vai ouvir. Que ninguém ouviria, ainda que gritasse.
Seis. Porque é seis o primeiro dos números perfeitos e eu preciso de algo perfeito nesta vida de desilusões incontáveis.
Seis. Seis olhos que se fecham. Os meus. Os da minha alma. Os do meu coração. Seis olhos que se fecham para desejar que as coisas mudem... ou para não abrirem mais.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 16 de setembro de 2012

Primeiro dia



O primeiro dia é um dia igual aos outros. Talvez se imagine que seja um dia de sol. Talvez se imagine que o mar vai clarear e ganhar três tons distintos. Talvez julguemos que, nesse dia, vamos correr serras e prados ou descalçar os pés na areia e receber o toque do mar. Mas não. O primeiro dia é um dia igual aos outros.
Dar o coração pela primeira vez a alguém não pesa. Quem nunca sofreu por amor não teme a conclusão abrupta nem o inferno de uma separação precoce. Então, o primeiro dia é como todos os outros dias, só que, sendo o dia onde nasce o primeiro amor, um coração foge do peito de alguém e o nosso destino passa a ser carregado nas mãos de outra pessoa.
São sorrisos e flores. Saltos e gritos. Histórias e momentos. Talvez se imagine que vá ser o melhor dia da vida de alguém ou o principio inabalável de um "para sempre". Mas, de alguma maneira, o primeiro dia em que amamos é só mais um dia para guardar no meio de tantos outros dias.
Ainda assim, para alguns românticos, o primeiro dia é eterno. E a data, nunca guardada em agendas ou calendários, perpetua-se na memória e estende-se aos cantos mais loucos da imaginação.
Depois, nesse mesmo dia, todos os anos, o lugar vazio onde um dia tivemos um coração que podíamos chamar de "nosso", dói um pouquinho na ausência de quem tanto o fez bater.
E, embora seja um dia igual aos outros, olhamos para as fotografias, apenas para descobrirmos que, nesse dia, o primeiro dia, o sol brilhava e o mar clareou a ponto de ganhar três tons distintos. E que corremos por serras e prados, molhámos os pés na água gelada do oceano, fomos felizes. Mas não é isso que torna o primeiro dia diferente dos outros dias. O que o torna diferente é que, mesmo que os anos tenham corrido, pensar nele ainda nos arranca um sorriso.
O primeiro dia em que damos o coração é um dia igual aos outros. Um dia que poderá acontecer a qualquer momento, para qualquer pessoa. Mas, de uma forma inexplicável, o primeiro dia marca um momento único: o momento em que, por forças maiores do que os homens, a nossa vida passou a ser vivida por alguém.
O primeiro dia é um dia igual aos outros, sim. Só que ao contrário de todos os outros, também é um dia que se repete em nós todos os dias.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 8 de setembro de 2012

Pormenores



Para o meu irmão

São pormenores. A maneira como pousas o braço sobre os meus ombros ou como me despenteias de propósito, em tom de brincadeira. As conversas sobre tudo e nada. A apresentação deste livro ou daquele programa que achas que poderei gostar.
São pormenores. Quando páras e olhas para mim com orgulho. Quando me aborreces por horas para me explicares que estou errada relativamente a algo e como, no fim de me fazeres chorar com as palavras duras que eu precisava de ouvir, abres um sorriso e me convidas para um café.
São pormenores. A forma como me defendes quando alguém me ataca ou diz mal de mim. O interesse que tens pelas pequenas coisas que eu faço. A tua felicidade nas minhas vitórias e o teu incentivo para eu continuar sempre.
São pormenores. O teu sorriso, de olhar pousado no vazio. A forma como seguras o cigarro entre os dedos e conversas por horas sem sequer te lembrares de o acender, como se até os vícios fossem secundários quando estás comigo.
São pormenores. O olhar atento, o pensamento distante, o sorriso que é capa e carapaça mas, ainda assim, também é verdade. A força, o discernimento, a luta constante contra o que julgas que está errado no Mundo.
São pormenores. A maneira interessada mas ausente como abres o jornal, o entusiasmo com que falas de jogos novos e te envolves nos interesses mais profundos da política e economia, como se soubesses um pouco de tudo. A forma como me deixas entrar nos espaços recônditos das tuas piores memórias e, ao mesmo tempo, me dás esperança num futuro melhor.
São pormenores. Quem olha para ti não vê. Não sabe que tens esse espírito que anima os lugares por onde passas ainda que por dentro não estejas bem. Não sabe que és capaz de passar da pessoa mais carinhosa do mundo à mais dura se assim tiver de ser. Quem olha para ti não sabe que és sensível e forte ao mesmo tempo, que passaste pelas provações do tempo e ainda estás de pé, disposto a fazer sorrir cada pessoa que por ti passe.
Quem olha para ti não sabe que tens uma alma rica. Que dás a mão aos amigos e até aos estranhos, se os vires mal. Quem olha para ti diz que te vê e não sabe que tu és um milhão de pormenores que te tornam especial.
Podem ser pormenores mas tu falas e eu acredito. Acredito que podes mudar o Mundo. Acredito que mesmo que a vida traga as piores coisas, é possível sobreviver. Acredito que existem heróis, como os da banda desenhada, e que esses heróis são justamente feitos desses pormenores que ninguém vê.
São pormenores... mas eu fecho os olhos e imagino-te assim: ao pormenor. E essa visão de ti é tão perfeita que, às vezes, por entre a saudade, esboço um sorriso e acredito, de coração, que tudo vale a pena. Sim! São pormenores. Eu sei os teus, tu sabes os meus e ambos sabemos que não há distância que possa roubar-nos as coisas que partilhámos no pormenor de um olhar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 2 de setembro de 2012

Setembro



Setembro. Foi em Setembro que eu nasci na consciência de quem sou. Foi em Setembro que aprendi a amar o que fica dentro, fora e além de mim. Intempestiva como as marés e saudosa como os ventos, foi em Setembro que aprendi que posso permanecer de pé mesmo se tiver lágrimas nos olhos e um coração dorido.
Setembro. Foi em Setembro que abracei as palavras pela primeira vez e foi em Setembro que decidi, na alvorada da minha infância, que seria uma escritora de coração. E foi em Setembro que me condenei a viver uma vida de papéis brancos e de caneta na mão, com as mágoas nas pontas dos dedos e a saudade infiltrada nos locais mais inóspitos da alma. Mas também foi em Setembro, numa tarde chuvosa de Setembro, que uma vez, uma única vez, me ofereci para desistir de tudo o que já tinha construído com palavras.
Foi só uma vez, acreditem em mim! Foi só uma vez, em Setembro. No calor do momento, um grito e um gesto. Um pensamento certeiro nas palavras atiradas ao ar. Foi só uma vez mas eu quase desisti das palavras por um amor maior. Foi em Setembro: os meus lábios não souberam calar o medo num beijo. E eu perguntei se devia deixar de escrever. Falava a sério, embora só o tenha dito uma vez e sem querer, porque o perguntei a alguém que me fazia viver em poesia, que era poesia, que eu amava como a poesia.
Setembro. Foi em Setembro que ganhei a consciência do fim. Foi em Setembro que aprendi que algumas pessoas não podem ficar. Que outras não querem ficar. Que a morte ou o tempo se anunciam e a nossa alma quebra. Foi em Setembro. A consciência roubou-me a felicidade. A criança morreu em mim e os contos de fadas foram morar para o horizonte distante que se tornou, entretanto, a minha maior fantasia.
Setembro. Foi em Setembro que conquistei mais um sonho. Foi em Setembro que avancei sem medos, fugindo de tudo o que me magoara. E foi em Setembro que, anos depois voltei, disposta a enfrentar tanto quanto tinha deixado para trás.
Eu nasci com a alma de Setembro porque foi nos muitos Setembros da vida que eu aprendi a rir, a chorar, a sofrer, a amar, a seguir. E é por isso que o velho calendário na parede marca sempre o mesmo mês, como se o tempo se suspendesse nas memórias que ali guardei.
Setembro. O meu Setembro de fel e amargura. O meu Setembro de felicidade e contentamento. Sim! Foi em Setembro. Foi em Setembro que eu me tornei tudo o que sou!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (Shay Mitchell)