terça-feira, 24 de abril de 2012

História d' encantar


Foi uma história de encantar. Uma história daquelas que embalam crianças e as fazem sorrir durante sono. Uma história de princesas e fadas e arco-íris. Foi de facto uma história maravilhosa. Lembrar-me-ei sempre dela como um sonho. Que realidade podia deixar cicatrizes doces?
Foi uma história bonita. A menina sonhadora que cresceu e encontrou o amor. A menina poeta que escreveu eternamente sobre o sentimento mais inexplicável de todos. Hão-de contar esta história. A história do amor, a história dos amantes, a história das certezas e dos risos e dos corações acelerados. Vão contar esta história muitas vezes...
Eu vou certamente contá-la. Vou contá-la aos ventos e às marés. Sussurrá-la aos ouvidos das sereias e das ondinas, para que a espalhem pelos sete mares. Vou contá-la às fadas para que a elevem aos céus e a façam cair, na forma de pó, sobre cada vulto adormecido. Não haverá ninguém no mundo que não saiba o que é o amor. Não haverá ninguém no mundo que não saiba que ainda há histórias de encantar.
Foi uma história de encantar. Uma história de amor a queimar a alma até haver apenas cinza. Uma história de paixão a rasgar a pele até haver só cicatrizes. A história da princesa desterrada que nunca teve um trono, que nunca teve um salvador. A história da menina que viveu no chão, numa prece constante por um pouco de céu.
Foi uma história de encantar. Daquelas que fazem rir. Daquelas cuja ironia passa ao lado dos ouvintes. Daquelas que as crianças gostam de ouvir na inconsciência e que perturbam os adultos. Uma história onde a felicidade veio no fim. Na derradeira página, onde a morte se assumiu e a personagem principal ficou finalmente só pela eternidade.
Vamos contar ao mundo. Um dia a menina sonhadora cresceu e encontrou o amor. A menina poeta escreveu eternamente sobre o sentimento mais inexplicável de todos. Um dia a menina percebeu que toda a gente é cega à dor dos outros e que é por isso que as histórias de encantar têm finais felizes...
Não podemos dizer ao mundo que a menina encontrou o amor e que isso a destruiu até não haver mais sonhos dentro dela. Não podemos contar que os poemas eram punhais a dilacerar um sentimento no qual ela queria deixar de acreditar.
É uma história de encantar. É assim que deve ser. Um sorriso no rosto e uma tiara imaginária sobre o cabelo dourado. Os olhos vendados à realidade. Mas para quê, se a dor está lá e fere, alastra, corrói?
Foi uma história bonita. Uma história tão bonita que a faz sorrir todas as noites antes de ir dormir... que a faz sorrir abertamente antes de pedir aos Deuses, numa prece ponderada, para não acordar nunca mais!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de abril de 2012

Memórias no vazio


A memória riu baixinho, enquanto atravessava a sala deserta. A mesma sala deserta que estava apinhada de fantasmas tristes. A mesma sala deserta onde se amontoava a poeira do tempo. A mesma sala deserta onde ela estava sozinha. Sozinha como os fantasmas e a poeira e o deserto de uma alma despojada de sonhos.
Apoiou-se nos braços do sofá velho e gasto e olhou para ela. Bem dentro dos olhos apáticos. Bem dentro da alma carcomida pela saudade e a distância. Ela não reagiu. Não pestanejou sequer. Então, a memória beijou-a. Primeiro levemente, carinhosamente. Depois, com ansiedade. Finalmente com uma necessidade crescente de fazer parte do vazio que ela tinha nos olhos.
O ondear claro e óbvio da saudade anunciou-se nesse beijo e, qual intruso, foi sentar-se discretamente ao lado dela. E uma lágrima caiu-lhe dos olhos e percorreu-lhe o rosto exactamente ao mesmo tempo que um sorriso aflorava, quebrando a apatia.
Depois do beijo, o vazio. O vazio incoerente. A apatia acentuada. O medo desmedido que surgia na forma de lágrimas despidas de sensações.
E a memória abraçou-a e deixou-a chorar, enquanto a saudade adensava e se tornava corpórea, ganhando forma dentro dela.
Cansada. Demasiado cansada da vida. Demasiado cansada de não sonhar. Demasiado cansada da sala deserta onde ela não era mais do que outro fantasma com corpo. Demasiado cansada de ter de respirar. Foi no cansaço que ela recebeu a saudade e no cansaço que ela deu a mão à memória e a seguiu, deixando o corpo para trás.
E a memória deu-lhe a mão, limpou-lhe as lágrimas, arrancou-lhe um sorriso e sorriu também. Depois, qual amantes, deixaram a sala deserta. A mesma sala deserta onde os fantasmas tristes tinham adormecido e a poeira ainda adensava. A mesma sala deserta onde ela fingira viver durante tanto tempo. A mesma sala deserta onde ela já não estava. Onde já não estavam as suas memórias saudosas e a sua alma despojada de sonhos.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Alma quebrada


Toma. Leva também a minha alma. Leva-a juntamente com os sonhos que te dei e com o coração que me roubaste num beijo. É assim que deve ser. Não há outra maneira...
Leva-a. Leva a minha alma, mesmo rasgada, mesmo ferida, mesmo vazia de tudo o que algum dia foi bom. Leva-a nessa bagagem leve de memórias vãs que esquecerás na primeira estação. Mas leva-a. Mesmo que a percas. Mesmo que a deites fora. Não importa!
Leva a minha alma, da mesma forma que me levaste a esperança. Leva-a da mesma maneira como, tão subtilmente, fizeste de mim criada dos desejos insensatos do mundo. Não consigo trazê-la mais comigo.
Sorrisos, lágrimas e tantas, tantas memórias. É isso que estou a oferecer-te. Os meus sorrisos que eram teus, as minhas lágrimas tontas e desesperadas, cheias de promessas, e as memórias que guardei. Memórias de desenhos e de flores e de mil brincadeiras. Rir até chorar, sorrir num choro magoado, dar até uma gargalhada dorida por entre as piores coisas da vida. A minha alma é capaz de tudo isso. Então, por favor, leva-a contigo. Não preciso dela! Já não preciso de me rir ou de chorar ou de recordar o que quer que seja. Estou cansada... Tão, tão cansada...
Toma. Leva também esta alma suja, encardida, feita de trevas. Leva-a na maleta ou na algibeira. Leva-a, seja como for. Já não me importa. Mas leva-a, com cuidado ou aos tropeções, onde quer que vás. Porque, então, se alguém me perguntar como está a minha alma, poderei dizer que está contigo, sem ter de explicar que está quebrada e dorida.
Leva-a. Leva-me esta alma que já não me serve os dias nem as noites. Esta alma que já não me encara e que já não me responde. Esta alma que me odeia por tudo o que lhe fiz. Leva-a contigo e deixa-me só. Preciso de esquecer...
Os olhos ficam abertos, cansados das lágrimas, cansados da dor. O mundo gira e a alma pesa-me. Leva-a. Leva-a para longe e deixa-me dormir. Estou cansada... Cansada de ser uma pessoa e de ter uma alma ferida. Cansada de ser deixada para trás, com tão pouco como um peito dolorido que já gastou todo o amor que tinha para dar. Por isso leva-a. Leva a alma. Leva-a como levaste os sonhos que te dei o coração que roubaste. É assim que deve ser. Não há outra maneira.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Rumores


Há rumores pela cidade. Talvez não os ouças. Talvez não queiras ouvi-los. Mas há rumores a percorrer as ruas, cantando na voz do vento. E não consigo fugir-lhes. Perseguem-me, atormentam-me. E são mentira. Não são?! Diz-me que sim...
Ontem o vento contou-me que apagaram o brilho dos teus olhos. E, feito menina, chorei de dor, enquanto gritava que não podiam roubar-te a luz do olhar, da mesma forma que não podiam roubar o brilho das estrelas. Mas, depois, olhei para o céu. Apagaram as estrelas, meu amor. Há apenas o nevoeiro e a luz amarelada de uma cidade adormecida.
E o vento ri-se, enquanto espalha o rumor. "Apagaram o brilho dos teus olhos". Ele não sabe o que diz! Não sabe que o brilho dos teus olhos é esperança. Não sabe que, quando os teus olhos já não brilharem, o mundo chega ao fim...
Há rumores nas ruas desta cidade deserta. E risos cruéis. E gritos de alegria. Há fantasmas do passado. Portas fechadas e sonos profundos. E ninguém entende. Como é possível que ninguém entenda quando eu vi num primeiro olhar? Não podem apagar-te o brilho que trazes nos olhos. Não podem fazê-lo sem destruírem o que restou de bom nesta vida sem vida que trago sem ti. Não podem fazê-lo sem desequilibrar o universo...
Tentei explicar ao vento quem tu és. O vento não ouve. Não quer saber. Sopra somente, em gritos mudos. Espalha o rumor pelas praias, pelos vales, pelas serras e pelo que fica além do infinito. "Apagaram o brilho dos teus olhos".
Mas eu não acredito. Não posso crer! Ninguém poderia jamais roubar o brilho dos teus olhos. Ninguém poderia roubar-te a essência de seres feliz. Há rumores... rumores de que apagaram as estrelas, rumores de que inverteram as marés, rumores de que morreu um imortal. E que assim seja! Posso viver na escuridão das estrelas apagadas, no frio de marés invertidas e num mundo de efemeridades. Mas não! Não podem ter apagado a luz do teu olhar. O teu olhar que me é estrela, mar, maré e imortal. O teu olhar não pode ter perdido o brilho!
Há rumores pela cidade. Sopram na voz do vento e entranham-se na pele das pessoas que passam na rua. Dizem que apagaram o brilho dos teus olhos. Não sei se os ouves. Espero que não! Porque eu, que os ouço, encontrei o brilho das lágrimas para os meus olhos e é com ele que brindo os rumores de que os teus perderam o brilho.
Não ouças o rumor. Não ligues ao vento mesquinho e sem idade que se habituou a percorrer as ruas, sem se importar com ninguém. Olha para mim. Eu não acredito. Não acredito nestes rumores nem em quaisquer outros. Tu és tu: com a tua essência perfeita, a tua alma completa e o teu brilho nos olhos. E, se algum dia for diferente, correrão rumores de que o meu coração partido parou... correrão rumores de que o vento roubou, em palavras, a derradeira sombra de vida em mim... e esses, acredita, serão verdade!


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet (Starry Night - Van Gogh)