quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Barco à vela

Dei o teu nome ao meu veleiro de sonho porque tinhas, no olhar, a fúria do mar de Inverno. Imaginei pôr-te no meu mar de fantasia, para poderes navegar sem destino. Sabia que tinhas um porto na minha alma triste e um Abrigo no meu coração desperto. Mas não to disse. O sol brilhava.
Agarrei-te nas mãos e ajustei-te as velas, qual mãe que ama os seus filhos mas que os cria para o mundo e sabe que os vai perder. Não esperei que o vento soprasse, tão breve, vindo desse Norte ciumento e cruel, querendo arrancar-te dos meus braços. Ainda assim, quando ele soprou, beijei a tua proa e pousei-te no mar das minhas lágrimas, para seres o veleiro de sonho de uma liberdade que eu não tive.
Tu respiraste fundo a maresia e sorriste. E eu sorri também, apesar de ver o desapego do teu sorriso. Tinhas o alento de uma tripulação, a força de um exército e a alma de um herói. Foi nesse momento que te perdi. Então, quando te pousei no mar do meu choro, o teu coração bateu pela primeira vez. Levaste o teu coração no convés e o meu preso ao mastro da saudade.
O sol brilhava. Brilhava no alto desse céu azul, quando levantaste ferro e me fugiste, por entre os dedos, navegando de ilusões.
Nunca disse adeus às ilusões desse que, afinal, era apenas um veleiro de saudade. E fiquei a acenar, na costa, com os olhos marejados de dor, enquanto as tuas velas viravam nuvens e tu desaparecias no horizonte da minha esperança vã.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A carvão

Ao meu avô
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Pintaram a carvão esse retrato de um olhar. Esse retrato frio e pálido, de preto e cinza sobre branco amarelecido pelos anos, no qual tu olhavas para mim e eu olhava para ti, com um amor que o tempo não soube esbater.
Pintaram-nos a carvão. Temos os olhos negros, os sorrisos cinzentos, os rostos com nuances de palidez eterna. Julgaram que nos viam. Foram loucos de julgar que olhavam para nós e nos captavam a alma nesses tons forçados. Que serias sempre o carinhoso velho sorridente e que eu seria sempre a criança de vestido aos folhos com fitas no cabelo. Retrataram-nos tão mal, julgando estar certos. Traíram-nos tanto quanto a arte consegue trair alguém.
Foi insensatez, essa linha certa e perfeita que nos traçou os bustos. Jamais seríamos um retrato a carvão! Tu tinhas os olhos castanhos, tal como eu. Eram sempre doces e ternos. Sempre… mas mais ainda quando olhavam para mim. E o vestido era vermelho, o teu rosto tinha uma pele clara e estava levemente marcado pelo sol e pela idade, o laçarote era ao xadrez e o céu era azul. Ainda assim, eu lembro-me bem que nada tinha a cor do nosso olhar. Os nossos olhares, eram verdes, roxos, amarelos e cor-de-rosa. Tinham a cor do vento, a cor do céu, a cor do mar, a cor da eternidade de um amor de sangue. Tinham todas as cores do arco-íris. As que se vêem, as que não se vêem e aquelas que só nós víamos…
Podiam ter pintado a carvão a tua morte. Esse dia em que as estrelas se apagaram e os pássaros não puderam cantar. Esse dia em que o Outono ficou gélido, como o Inverno, e no qual parte do meu moído coração deixou de bater também. Dizem que não se morre de tristeza. Eu não acredito! Acho que se morre um bocadinho em cada tristeza da vida. Por isso, podiam pintar dessa forma triste e monocromática a tua morte. Como podiam pintar assim a minha melancolia, a minha saudade… São sentimentos eternos que pintarei eternamente com cores tristes, em retratos a carvão.
Mas, naquele tempo. Aquele tempo em que podíamos olhar um para o outro e sorrir. Naquele tempo, não podiam ter-nos pintado a carvão. Nós éramos cor. Havia um brilho de felicidade que se perde nas linhas, por entre o cinzento e o negro. Devíamos ter-lhes dito que não podiam pintar-nos a carvão. Não os devíamos ter deixado apagar todos os tons do nosso olhar.
Hoje, olho o retrato. Esse retrato feito a carvão, há tantos anos atrás. E é cinzenta a minha mágoa, é negra a minha saudade, é esbatida a minha esperança de tornar a ver-te. Mas no retrato… nesse que continua feito a carvão, pendurado na parede branca e que guarda o nosso olhar, o nosso sorriso e o nosso amor. Nesse retrato, hoje eu vejo que estão todas as cores que há no mundo!

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet