segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Apesar de tudo


Ele caminhou sobre a água gélida do meu inferno e veio beijar-me. Primeiro, beijou-me os lábios de pedra, depois o rosto cansado e, por fim, com a subtileza de uma gota de água, escorreu pelo meu corpo desnudo.
Procurava de mim o que não sou para poder roubar-me o que não tenho. Mas eu deixei-o procurar nas entranhas adormecidas do meu sangue de fel.
Tudo o que ele podia levar, já me tinha sido tirado e tudo o que ele me queria dar, eu tinha de sobra. Não havia medo nem ansiedade em mim. Apenas o desapego óbvio de quem já não quer saber. De quem já não guarda o suficiente para poder importar-se.
Mas ele olhou-me nos olhos, tentou perscrutar os sons abafados da agonia da alma e procurar sinais de um coração. E eu encarei-o, frontal e duramente, tentando impedi-lo de entrar nos recantos poeirentos do meu pensamento porque, mesmo não tendo coração, não encontro a paz de não amar.
Por fim, cansou-se. Como se cansaram todos os que vieram antes dele e como se cansarão todos os que vierem depois.
O meu corpo é a prisão da morte que não chega e a alma definha todos os dias na ausência do coração que ofertei. E os meus lábios de pedra são beijados mas não beijam, da mesma forma que os meus olhos fixam mas não vêem.
E ele partiu, como tu, mas sem levar o meu coração. Esse coração que bate, quente e vivo, nas mãos mortais do meu eterno amor, que é teu... apesar de tudo.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Canto da Noite

O seu canto ecoou pela cidade. Um choro. Um grito. Uma melodia. Ninguém sabia dizer... Ecoou pelas paredes nuas do luar, desvanecendo nas ondas de um mar sem céu. Estava na hora de perder o medo e erguer a voz ou de calar para sempre os anseios, nesse silêncio de emoções rotas e despidas, que jamais são despojadas do derradeiro corpo do desejo.
Então, perante esse ultimato infernal da escuridão, ela correu, com os pés nus, pela areia fria da noite e deixou que as palavras saíssem... choradas, gritadas, cantadas, num misto de encantamento e dor que não podia ser descrito por nenhuma palavra humana.
As estrelas cintilaram nos seus olhos de amargura e as ondas rebentaram, cruéis e indiferentes, na sua pele calejada pelo tempo. Por esse tempo que não sabe esperar um pouco, para dar uma oportunidade cálida a um ser privado de vida. Ela ignorou-os. Ignorou as estrelas e o mar, como se não fossem os seus melhores amigos e tornou a libertar as palavras ao vento.
Mil crianças adormeceram na sua voz. Calmas, puras, indiferentes. Mil pessoas sonharam os mais belos sonhos do mundo. Distantes, egoístas, mudas. Mas ela? Ela gritou! Um grito que foi um choro. Um choro que se transformou na eterna música desse bramir materno e imortal das ondas. Não arredou pé a noite inteira porque tinha de dizer tudo o que guardava. Tinha de dizer as palavras que a fariam morrer, ou dormir, ou abrandar um pouco esse ritmo infernal que trazia sempre consigo.
O primeiro raio de sol veio iluminar-lhe o rosto. E, qual fantasma, ela viu-se desvanecer com a noite, evaporar nas ondas, enquanto a última sombra de escuridão vinha acariciar-lhe o rosto, com o primordial gesto de ternura.
E ela sorriu. Sorriu, enquanto chorava, cantava e gritava pela última vez, naquela noite de estrelas trocistas. E fechou os olhos, enquanto eu abria os meus, para receber a madrugada, com os olhos vermelhos e uma alma silenciosamente dorida.
Olhei de mansinho para o céu que aclarava e procurei-a na areia dos meus pensamentos, julgando-a ausente. Antes que tivesse tempo de o fazer, no entanto, senti-lhe os dedos suaves sobre o meu coração e soube que ela tornaria a cantar, a gritar, a chorar... para que um dia a possas ouvir. Para que possas ouvir o seu canto na noite. Para que saibas que ela é a Saudade. E que toda ela mora no meu peito, sabendo que é eternamente tua...

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Armadilha

Debati-me. Debati-me tanto que os meus pulsos ficaram feridos e os meus joelhos rasgaram e começaram a sangrar. Debati-me por horas, por dias, por semanas. Mas, então, a minha alma deixou de sentir. Doía-me o corpo e a incerteza. Doía-me o vazio que veio substituir esse grito constante da minha alma. E parei.
Parei, como um animal, numa armadilha, que aceita, em plena consciência ou por mero instinto, que o caminho a seguir é a morte. E tive tempo para lutar, tempo para negar, tempo para deprimir e tempo para aceitar… acabou.
Debati-me por horas, tentando alcançar aquele sonho que sempre se exibiu exoticamente mesmo à distância de um toque. Mas o sonho estava um milímetro longe demais e, por um milímetro, não pude agarrá-lo e obrigá-lo a libertar-me das amarras frias e dolorosas que me mantinham cativa de certezas que não tinha e de um futuro que eu não queria para mim.
Em tempos, acusaram-me de viver na escravidão do meu passado, como se ele pudesse fazer mais do libertar memórias, como se pudesse gerir a minha forma de viver. E foi com essas palavras que caminhei sempre, porque me cegaram com elas. Foram palavras insensatas, de quem não sabia que era muito mais fácil eu ser escravizada por esse futuro que se aproxima lenta e demoradamente, abraçando-me com a força inevitável de não me deixar escapar.
Sinto-me escrava do abismo. Como se as minhas correntes me arrastassem na sua direcção, afastando-me, passo a passo, de tudo o que sonhei para mim.
E choro. Antes debati-me e agora choro. Tenho de chorar. Tenho de chorar pelos passos que dei, rumo a esse abismo sem esperança. O abismo no qual acabarei por mergulhar nos anos de todos os sonhos que deixei, de todas as pessoas que não esqueci e de toda uma vida que não tive.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Barco à vela

Dei o teu nome ao meu veleiro de sonho porque tinhas, no olhar, a fúria do mar de Inverno. Imaginei pôr-te no meu mar de fantasia, para poderes navegar sem destino. Sabia que tinhas um porto na minha alma triste e um Abrigo no meu coração desperto. Mas não to disse. O sol brilhava.
Agarrei-te nas mãos e ajustei-te as velas, qual mãe que ama os seus filhos mas que os cria para o mundo e sabe que os vai perder. Não esperei que o vento soprasse, tão breve, vindo desse Norte ciumento e cruel, querendo arrancar-te dos meus braços. Ainda assim, quando ele soprou, beijei a tua proa e pousei-te no mar das minhas lágrimas, para seres o veleiro de sonho de uma liberdade que eu não tive.
Tu respiraste fundo a maresia e sorriste. E eu sorri também, apesar de ver o desapego do teu sorriso. Tinhas o alento de uma tripulação, a força de um exército e a alma de um herói. Foi nesse momento que te perdi. Então, quando te pousei no mar do meu choro, o teu coração bateu pela primeira vez. Levaste o teu coração no convés e o meu preso ao mastro da saudade.
O sol brilhava. Brilhava no alto desse céu azul, quando levantaste ferro e me fugiste, por entre os dedos, navegando de ilusões.
Nunca disse adeus às ilusões desse que, afinal, era apenas um veleiro de saudade. E fiquei a acenar, na costa, com os olhos marejados de dor, enquanto as tuas velas viravam nuvens e tu desaparecias no horizonte da minha esperança vã.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A carvão

Ao meu avô
.
Pintaram a carvão esse retrato de um olhar. Esse retrato frio e pálido, de preto e cinza sobre branco amarelecido pelos anos, no qual tu olhavas para mim e eu olhava para ti, com um amor que o tempo não soube esbater.
Pintaram-nos a carvão. Temos os olhos negros, os sorrisos cinzentos, os rostos com nuances de palidez eterna. Julgaram que nos viam. Foram loucos de julgar que olhavam para nós e nos captavam a alma nesses tons forçados. Que serias sempre o carinhoso velho sorridente e que eu seria sempre a criança de vestido aos folhos com fitas no cabelo. Retrataram-nos tão mal, julgando estar certos. Traíram-nos tanto quanto a arte consegue trair alguém.
Foi insensatez, essa linha certa e perfeita que nos traçou os bustos. Jamais seríamos um retrato a carvão! Tu tinhas os olhos castanhos, tal como eu. Eram sempre doces e ternos. Sempre… mas mais ainda quando olhavam para mim. E o vestido era vermelho, o teu rosto tinha uma pele clara e estava levemente marcado pelo sol e pela idade, o laçarote era ao xadrez e o céu era azul. Ainda assim, eu lembro-me bem que nada tinha a cor do nosso olhar. Os nossos olhares, eram verdes, roxos, amarelos e cor-de-rosa. Tinham a cor do vento, a cor do céu, a cor do mar, a cor da eternidade de um amor de sangue. Tinham todas as cores do arco-íris. As que se vêem, as que não se vêem e aquelas que só nós víamos…
Podiam ter pintado a carvão a tua morte. Esse dia em que as estrelas se apagaram e os pássaros não puderam cantar. Esse dia em que o Outono ficou gélido, como o Inverno, e no qual parte do meu moído coração deixou de bater também. Dizem que não se morre de tristeza. Eu não acredito! Acho que se morre um bocadinho em cada tristeza da vida. Por isso, podiam pintar dessa forma triste e monocromática a tua morte. Como podiam pintar assim a minha melancolia, a minha saudade… São sentimentos eternos que pintarei eternamente com cores tristes, em retratos a carvão.
Mas, naquele tempo. Aquele tempo em que podíamos olhar um para o outro e sorrir. Naquele tempo, não podiam ter-nos pintado a carvão. Nós éramos cor. Havia um brilho de felicidade que se perde nas linhas, por entre o cinzento e o negro. Devíamos ter-lhes dito que não podiam pintar-nos a carvão. Não os devíamos ter deixado apagar todos os tons do nosso olhar.
Hoje, olho o retrato. Esse retrato feito a carvão, há tantos anos atrás. E é cinzenta a minha mágoa, é negra a minha saudade, é esbatida a minha esperança de tornar a ver-te. Mas no retrato… nesse que continua feito a carvão, pendurado na parede branca e que guarda o nosso olhar, o nosso sorriso e o nosso amor. Nesse retrato, hoje eu vejo que estão todas as cores que há no mundo!

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Quatro

Eles deram as mãos e caminharam pelo areal sujo, naquele último dia de Verão. Estavam cegos. Cegos de não verem mais do que os olhos um do outro, por entre a neblina ténue daquela tarde de sol. Então, no olhar, traziam apenas a cegueira de acreditarem que o mundo podia parar e fazê-los serem melhores do que eram. Para serem um do outro. Talvez.
Atiraram-se ao chão e ficaram a ver o mar, com os pés nus enterrados na areia fria. E o mar era distante e bravo. Tão distante e bravo como o Inverno que se acercava a passos largos, subtil mas arrebatadoramente.
Sorriram. Sorriram como todos os amantes tristes fazem nos romances cor-de-rosa. Olharam um para o outro, com a timidez que sabiam que seria vencida, para poderem sentar-se mais perto. Para poderem cair no erro de fingirem que podiam amar-se mais do que se amavam, naquele segundo.
A medo, ele desenhou um coração na areia e ela sorriu, enquanto se levantava e recuava, aos poucos, antes de correr o mais que conseguia. O rapaz correu atrás dela, alcançando-a, sem dificuldade, e selando aquele momento com o primeiro beijo. E o primeiro beijo não foi mais do que o primeiro numa contagem decrescente para a morte do amor.
Quatro. Quatro beijos. Quatro dias. Quatro séculos. Quatro milénios. O amor morre. Morre como uma criança arrogante que decide, do nada, que não quer viver mais. Mas as pegadas estão marcadas na areia sólida da mente de ambos, lado a lado com o coração perfeito que ele desenhou para a rapariga, sem saber que enterrava ali o coração dela, para sempre.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Mentira


Ontem, eras a minha guarda inteira. Eras o meu exército, sempre disposto a lutar pelas coisas mais pequenas, acreditando que eu não merecia sair magoada. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o meu Abrigo, o refúgio da minha guerra interior, onde podia enterrar o rosto e fechar os olhos, esperando acordar no País das Maravilhas. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, tinhas a altura do céu, o brilho das estrelas, a imensidão do oceano. Eras, sozinho, o meu mundo inteiro, o meu jardim proibido, onde reinavas sobre tudo o que existe. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o amor da minha vida, a rosa sem espinhos, o caminho sem obstáculos, o pote dourado no fim do arco-íris. Tinhas descido do Olimpo, dominado os mortais e conquistado o meu coração de mulher. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o amor da minha vida, o meu Universo, uma linha de certeza entre o tudo e o nada. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Vou dizer que não és ninguém e vou mentir. Mentir somente, porque aprendi a verdade: ontem, eu estava cega. Cega de não saber que não existem portos seguros, nem deuses, nem certezas, nem países encantados, nem pessoas do tamanho do céu.
Estava cega de não ver além da tua perfeição. Da perfeição que ainda tens na cegueira, agora atenta, dos meus olhos.
Ontem, eu estava cega. Não há rosas sem espinhos…

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pedido


Não vais ouvir-me a pedir para ficares. Nem mesmo naquele esgar tentador do habitual “fica só esta noite, meu amor”. Há muito que sei acordar sozinha. Foi fácil aprender que adormecer nos teus braços e sonhar-te não significa prender-te. Foi fácil aprender que, se te prendesse, não saberia amar-te.
Sei que te pedi as palavras. E tu, inconsciente da impossibilidade, prometeste até que mas darias. Mas, sabes? Não preciso sequer que apregoes ao vento que a tua voz me vai encher os dias amargos. Amo já os teus silêncios. Aprendi, com eles, que a vida gira em torno de tudo o que esperamos e nunca vem.
E, hoje, meu amor, não peço que passes na mesma rua onde o meu olhar adormece. Porque os teus olhos me ensinaram que sou cega. Cega o suficiente para te imaginar em cada homem e para te desejar em cada avenida imunda, como se tivesses passado por lá um segundo antes e nos tivéssemos desencontrado, por acaso.
Não ouvirás o pedido mudo da minha inconsciência obcecada pela ideia do amor. Porque eu não sonho sequer pedir-te para que voltes atrás e me olhes nos olhos. Não sonho arrancar-te as palavras que não queres dizer ou fingir que me amas, só para ter um segundo de felicidade.
Senta-te por um segundo, então. Perde só um segundo a ouvires o único pedido que quero fazer-te. Depois, podes voltar à tua indiferença muda e esquecer o meu nome. Podes esquecer até o meu rosto. Só não te esqueças do meu pedido: não morras, meu amor!
Não morras antes de mim. Não deixes que essa velha carniceira de luto eterno crave em ti as garras antes de me levar. Não deixes que essa morte estéril venha apagar a luz dos teus olhos, enquanto os meus não perderem a cor.
Porque, acredita em mim: posso viver sem te ter, sem te falar, sem te ver passar nas ruas onde partilhámos todo o meu universo de emoções e o esgotámos. Posso correr contra a multidão e nadar contra marés de sofrimento com um sorriso falso e completo nos lábios que já não beijas. O que eu não posso é aprender a viver num mundo onde não estás.
Quero sentir que estás bem, mesmo que não possa vê-lo nos teus olhos. Saber que respiras, ainda que não cortes a minha respiração em beijos tristes. Saber que és feliz, mesmo que não possa senti-lo nos teus abraços.
Não te peço que faças parte do meu pequeno mundo que começa e acaba em pensar-te, mas peço-te que combatas o destino, se ele te quiser mais do que eu quero. Porque, ainda que não faças parte da insignificância do que eu sou agora, preciso que faças parte deste mundo onde caminho, invisível.
Não me obrigues a viver num mundo onde não estás. Porque eu, que sobrevivo sem ti, do modo rude que a vida me ensinou, não saberia viver num mundo onde não estás. Num mundo onde as estrelas se apagaram e o mar secou e as flores murcharam…

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Regresso

Um dia regressas. E quando chegas a casa, vês apenas as ruínas do que outrora foi o teu jardim, o teu pátio, a tua sala e o teu quarto. Aí, tentas visitar os amigos mas eles morreram. Morreram todos. Porque a juventude que te corre nas veias não é a mesma que corria nas deles e eles cederam. Não tinham tempo para viverem a mesma vida que tu.
Um dia regressas, como eu regressei. Olhas para o sítio onde te sentavas a ler romances, debaixo daquela árvore verde e frondosa que agora é um ramo seco e partido. Esperas ouvir o rio, mas ele secou e tem o cheiro pútrido e imundo que preenche toda a tua cidade.
Um dia regressas. Regressas e ficas à espera dos braços que te vão envolver, dando-te as boas vindas. Tudo o que encontras são pessoas a correr desvairadas, levando-te de assalto a bolsa de memórias que trazias ao ombro.
E, cansada do mundo que os teus olhos te devolvem, sentas-te na pedra fria do chão e choras. Porque o mundo não foi justo contigo e tu não foste justa com ele. Então, desejas ardentemente partir. Não podes! Não tens para onde ir agora, porque essa era a tua casa. Mas tu foste embora e a culpa é toda tua…
Um dia regressas. E olhas as tuas mãos, enrugadas e frias. Sentes o ardor da garganta velha e as dores no corpo.
Um dia regressas. Regressas porque partiste. E quando regressas percebes, finalmente, que voltaste apenas para morrer. Para poderes morrer na paz do teu passado destruído.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ilusões


Quero pintar o céu da cor dos teus olhos. E afastar as nuvens, para eles nunca chorarem. Fingir que é sempre Primavera no teu olhar e que a noite não vai cair nas trevas da tua tristeza, para arrancar os aromas da tua voz.
Quero dar o teu nome a todas as pontes, para os rios saberem que não podem separar as margens do meu amor e todas as crianças saberem como te chamas.
Vou fingir que mandaste destruir cada muralha do meu mundo de sonhos e que venceste uma guerra contra os ponteiros do relógio, sempre mais rápidos quando te tenho nos braços.
Quero embriagar o oceano com o cheiro agridoce do teu perfume e navegar num barco à vela que avance apenas, levemente, com a harmonia dos teus sorrisos. Porque o vento havia de sorrir como tu, qual criança amarga e magoada pela vida.
E, depois, quero sentar-me na foz, entre o oceano, as pontes e os rios, sob o céu soalheiro da manhã primaveril e ver o barco à vela tocar o horizonte de cada sorriso teu.
Quero que apareças e te sentes a meu lado, fantasma ou memória de um passado eterno, para me sussurrares mudamente, ao ouvido, e eu nunca mais esquecer o teu nome, os teus olhos meigos, os aromas da tua voz e o cheiro agridoce do teu perfume.
E, aí, quero travar contigo essa batalha contra os ponteiros do relógio, até o tempo parar para sermos um do outro, para sempre.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Recordação


Eu ainda me lembro do tempo em que era fácil. O mundo caía aos pedaços e, algures, sem eu pedir nada, havia um par de braços em meu redor que me dizia que eu não ia cair.
E era verdade. Pelo menos para mim. Porque a mentira era subtil demais para que eu não jurasse que era verdade.
Eram tempos em que eu podia parar e escrever. Só escrever. Durante horas, construindo uma muralha em meu redor. Sendo feliz. E a felicidade doía de uma maneira doce e terna. Moendo a alma aos poucos e transformando-a na essência daquilo que eu me havia de tornar.
Foram os dois braços que me abraçaram em tempos que precisaram de me largar. Porque eu precisava de aprender, doesse o que doesse, que o mundo também me faria cair. E, mais importante ainda, que eu me podia levantar. Sozinha. Totalmente sozinha.
Eu ainda me lembro do tempo em que era fácil querer levantar-me. Exigia apenas uma lágrima. Uma respiração profunda. E erguer-me de um salto para seguir o meu caminho.
Apagaram-me os caminhos. E não é fácil. Sinto dois braços distantes de mim, ainda crentes na minha força. E sinto a lua apagada no céu. E o mar com ondas de mentiras.
Quero fechar os olhos e dormir para sempre. Estou cansada. Cansadíssima. Nem sei para onde me arrastar. Sou um corpo inútil caído no centro desse mundo que já caía em pedaços na minha infância.
E é raro poder parar e escrever. Só escrever. Porque me roubaram o tempo e a felicidade. Roubaram-me tudo até sobrarem só as palavras. E as palavras, sozinhas e doridas, não fazem muito sentido no meio dos destroços do meu coração que quase já não se lembra do tempo em que era fácil.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 18 de maio de 2010

Lágrimas de Pedra III

Aninhei-me nos teus braços. Nos braços da nossa solidão. Mesmo sem palavras, havia tons de despedida em nós. Ir embora faz parte das minhas asas abertas. Das asas que me pediste que abrisse. Ainda assim, às vezes, para viver, preciso desta sensação de que tu vais estar sempre aqui. Mesmo depois de eu ter partido. Mesmo se eu já não viver.
Estarás aqui eternamente. Sempre com o mesmo orgulho firme e frio. Sempre com as mesmas lágrimas de pedra.
Hoje, aninho-me nos teus braços e busco o conforto. Encosto a cabeça no teu ombro e descubro que és suave. És a beleza. Ainda mais hoje porque te olho com os olhos de quem parte amanhã.
Quero que decores o meu rosto. Todos os seus traços imperfeitos. Toda a sua tristeza.
Amanhã vou-me embora. E tu ficas. Ficas para contar que nos amámos e para ofereceres um sorriso a pessoas de eras vindouras.
Talvez um dia mais alguém veja as tuas lágrimas e compreenda a tua dor. Para já somos tu e eu… deixa-me aconchegar-me em ti, abraçar-te. Pareces-me hoje mais meu. Sinto-me hoje mais tua. Deixa cair em mim as tuas lágrimas de pedra.
Faça-se silêncio para que a dor oculta no meu coração possa cantar para ti, uma vez mais. Faça-se silêncio para ouvires, no bater do meu mortal coração, a eternidade do nosso amor.

Marina Ferraz

Serenata - 7 de Maio 2010


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Feliz para sempre

Sempre o mesmo sonho. Um abraço que termina com um choro. Um discurso mudo que termina com um sonante adeus. E todas as explicações do mundo para o que podia ser resumido a um “não”. Cansa-me.
Cansa-me ouvir sempre o mesmo e ver sempre o mesmo. Decorar sempre a expressão séria do teu rosto quando me dizes que, desta vez, acabou mesmo. E depois eu corro. Nesse mesmo sonho eu corro e deparo-me comigo mesma. Sozinha. Todas as ruas desertas e todas as luzes entremitentes, numa cidade fantasma onde o único ruído é o da minha respiração ofegante e onde a única sensação é a do medo. E corro. O som dos meus passos nunca se sobrepõe aos meus suspiros. Mas corro, com a dor e o medo acompanhando a minha corrida desleal contra o tempo. Porque é contra o tempo que eu fujo. Corro sempre na direcção do ontem. O ontem em que tinha a esperança de não sonhar que ias embora outra vez. O ontem onde o teu rosto não estava sério e tu sorrias. O ontem onde jurei a pés juntos que, hoje, ainda me ias amar.
A rua continua sempre deserta mas há o terror. O terror de quem julga que, no canto, vai surgir alguém e que esse alguém me vai roubar de ti. Não quero ouvir outra respiração que não a minha. Não quero escutar outros passos. Não quero ver qualquer silhueta além da minha sombra inconstante como a luz dos candeeiros de rua.
Mas aparece sempre o mesmo vulto. Sempre com o mesmo manto, com o capuz preto tapando o rosto. E o vulto tem sempre um punhal na mão. Paro quando o avisto e estou tão perto dele como de mim. Vil loucura, é nesse segundo que julgas que não reconheço a tua postura, que não sei de cor os traços dessa mão que empunha o meu fim. E, por seres tu, mesmo não podendo olhar-te fundo nos olhos encobertos, eu abro os braços e aguardo a morte. Sabes, meu amor? Quando cravas o punhal no meu peito e o meu sangue mancha a tua pele demasiado branca, eu esboço o último dos meus primeiros sorrisos. E ele é teu. Porque estou a pensar em ti. A morrer contigo no meu pensamento. A morrer nos teus braços. Pelas tuas mãos que sempre ditaram o correr da minha vida.
Morro. Maldito sonho. Morro pelas tuas mãos. Morro sangrando de saudade. Morro num adeus mas contigo perto. Maldito sonho. Como odeio essa sensação de poder perder-te e fugir. Como odeio saber que vou ver-te à minha frente com esse punhal na mão. Como odeio saber que a morte é doce se estiveres perto. Morro. Contigo. Por ti. Em ti. Maldito seja esse sonho que me cansa. Esse sonho onde sou, de facto, feliz para sempre…

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ruínas

A minha casa ruiu. É o que acontece com o tempo. Quando o tempo desgasta a vida e a vida cede. As casas ruem e o barulho da rua torna-se ensurdecedor.
A minha casa ruiu. Ruiu num alicerce quebrado sem que eu saiba o motivo. Nas palavras que não pude dizer e nas que não pude ouvir. Nos motivos dados e naqueles que não foram dados mas antes esquecidos no silêncio.
Ruínas de mim. Foi isso que restou. Ruínas. Pedra sobre pedra com meia dúzia de alicerces intactos segurando coisa nenhuma. E de que vale toda a firmeza de alguns quando já ruiu a minha vida? De que vale o esforço para erguer a alma quando ela jamais se levantará com o mesmo fulgor?
A minha vida ruiu. Caiu sobre mim e levantou a poeira do meu choro. Da minha mágoa. Da minha saudade. Compreendi que ninguém percebeu o que eu sentia. E perguntei-me se seria minha a culpa. Porque eu posso ser culpada. Posso ter passado tempo demais a dizer que amava, sem explicar que o meu mundo estava assente, também, em pilares de afecto, estima e harmonia.
Mas a minha casa ruiu. Porque casa alguma se aguenta ao desgaste dos ventos do norte, quando o vento sopra com a força inevitável de nada poder estar solto e livre o suficiente para escolher estar firme.
Uma palavra, um gesto, um retorno. Qualquer coisa, na verdade... Foi essa a minha espera. A minha lonjura. A minha demora.
A minha casa ruiu. Pobres alicerces caídos com a força de um amor eterno. Ali, destruídos e sós, por entre tantos que apenas se curvaram e tantos que se mantiveram firmes.
Mas que importa? A minha casa ruiu de saudade e a minha vida também. Porque aquele pilar era central. Porque nenhuma casa sobrevive se as fundações ruírem.
E apetece-me agradecer ao vento, com ironia. Dizer-lhe que me matou a alma mas que eu estou bem. Só que o vento ia rir-se. Como sempre. Ia esquecer-se das minhas palavras. Como sempre. Ia saber que era mentira… E não ia devolver-me a minha casa… porque os meus alicerces cederam e eu sou ruínas de mim.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 30 de março de 2010

Hoje

Hoje ela riu e hoje chorou. Hoje, a sua felicidade verteu nos seus olhos tristes como rios de uma mágoa contente. E as gargalhadas ecoaram pelo deserto de todas as coisas amarguradas.
Acordou cedo. Estava consciente apenas da ruína. Não acreditava em nada e queria tudo. Arrastou os medos pelo braço e atirou-os pela janela, incapaz de os deixar atormentá-la.
E lavou a cara de esperança, recusando-se a chorar mais. Hoje ela viveu. Feliz e triste. Completa e incompleta. Pedaço despedaçado de eternidade ausente. E nenhuma das suas mágoas a assombrou. Nenhum silêncio veio substituir as palavras que pensava.
Hoje ela acreditou e perdeu a fé. Mas em momento algum se despediu da constância do seu ser. E, quando fizeram questão de vir roubar o sol do céu para o cobrirem de estrelas tristes, ela acendeu uma vela e respirou fundo o aroma adocicado da saudade, envolta na luz quente do passado.
Hoje ela riu e hoje chorou. Sentiu. Era raro nascer um sentimento no seu peito morto pelo tempo. Então, hoje, quando a sua felicidade verteu nos olhos tristes, como um rio de contentamento, ela vestiu o seu melhor sorriso e foi passear pela cidade dos seus sonhos.
E hoje ela viveu. Consciente e inconsciente. Feliz e triste. Completa e incompleta. Na realidade do sonho. No sonho da realidade. Na realidade sonhada. E foi noite e dia. Amanhecer e anoitecer. Tudo… e, simultaneamente, nada.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quinta-feira, 25 de março de 2010

Copo de Morte

- Um copo de morte, por favor!
Um sorriso do outro lado do balcão. Um sorriso pelos meus olhos vermelhos. Um sorriso pelo meu rosto molhado. O sorriso de quem sempre soube que pediria a morte como salvação de momento e não como pena a cumprir eternamente.
O líquido, cor de âmbar, ardeu ao percorrer-me a garganta. Sabia bem aquele travo a fim. Aquele sabor a não mais chorar. Aquele travo agridoce que pararia o meu coração, demasiado cansado de bater.
Podia ter-me arrependido. Podia ter sentido saudades de mim. Saudades de ti. Saudades do teu sorriso que jamais voltaria a estar do outro lado do balcão, pronto a servir-me a morte.
Tudo o que senti foi a calma de poder encontrar a paz além do teu sorriso trocista.
Bebi um copo de morte para fechar os olhos à alma. Porque a minha alma estava quebrada. Sangrava sempre, invisível aos olhos dos cegos que usam apenas o olhar para distinguir o que é físico.
E a minha alma não tinha nada de imortal!
O teu sorriso matou-me a alma naquele copo de morte que apenas me parou o coração.
- Um copo de morte e a conta…
Pousei a cabeça sobre os braços e sorri. Estava feliz. E os teus olhos brilharam antes de chorarem. Antes de servires a ti mesmo um copo da mesma morte à qual me condenaste muito antes de sorrires.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

sexta-feira, 12 de março de 2010

Carta

Hoje caminhei sobre os destroços da cidade até que os meus pés sangrassem. Procurei-te em cada esquina, em cada migalha de destruição. Não vi qualquer sinal de vida. Supus, por isso, que talvez já não estivesses vivo. Antes de o dizer em voz alta, o vento tapou-me a boca com milhares de mãos e obrigou-me a seguir pelo deserto.
Como se tu pudesses ter fugido… como se pudesses ter virado costas ao nosso amor na primeira batalha desta guerra sem fim.
Caminhei pelo deserto, consciente de que era mais simples acreditar na tua traição do que na tua morte. Como poderias ter morrido, meu querido, se ainda tenho no peito um coração a bater e ele é teu?
Caminhei pelo deserto durante dias. Até que a sede e o cansaço me venceram e me deixei dormir junto a um morro de pedra. Estava frio. Lembro-me que estava frio e que as minhas lágrimas pareciam congelar naquela noite sem lua.
Não te encontrava e não entendia porquê. Estavas tão vivo dentro de mim. Estavas tão acordado na minha memória.
Os teus olhos, castanhos e doces, suaves e intensos, continuavam a fitar os meus olhos fechados, numa recordação presente. E os teus braços envolviam-me para que eu não sentisse frio. Eu sabia, contra tudo o resto, que estavas vivo. E podiam dizer-me que era loucura. Não importava. Era a minha verdade, ainda que fosse mentira para todas as outras pessoas.
Acordei com a brisa nos meus cabelos. Sentia-me tão cansada como antes. Como se nunca tivesse dormido. Agarrei um punhado de areia e apertei-o com força, tomando força para me levantar.
E tornei a caminhar, como se pudesse percorrer o mundo inteiro com os pés feridos, à tua procura.
Por fim, regressei à nossa cidade destruída. Outra vez. E tu eras um nome numa pedra. Numa pedra que te lembrava como se não estivesses vivo. Como se não fosses aparecer para me perguntares onde tinha estado. Um nome e uma data numa pedra. Apeteceu-me rir da ironia. Tinhas sido tanto. Como podias ser apenas um nome?
Puseram-me a mão no ombro, para me confortarem. Como se ter acordado fosse um motivo para terem pena de mim. Eu limitei-me a afastar-me daquele toque que não era teu. Não podia aceitar o apoio de ninguém. Afinal, eu sei que o teu coração não parou. Deste-mo e eu guardei-o sempre dentro de mim. Tratei-o com cuidado. Fi-lo sobreviver à guerra, à dor e ao deserto.
Fui eu que perdi o coração. É o meu coração que reside debaixo dessa pedra com o teu nome. Foi ele que parou de bater no teu último suspiro.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

terça-feira, 2 de março de 2010

Dúvida

Quem compra um objecto partido,
Ainda que seja o melhor do mundo?
Quem escolhe ler um livro sem sentido
Ainda que digam como é profundo?

Quem ama uma loucura incoerente
Ainda que sobeje de pureza?
Quem escolhe a tempestade, indolente,
Por maior que seja a sua beleza?

Quem não optaria por estradas
Mais certas e mais fáceis de seguir?
Quem escolheria ter vidas trocadas
Com quem só trapos pode vestir?

Quem suportaria a própria alma
Optando por uma vida infeliz?
Como chegaria a paz, a calma
Nesse tormento que não se diz?

E quem quereria um coração
Partido e remendado como o meu?
Quem guardaria a desilusão
Que o amargo destino me escolheu?

Quem quer curar fantasmas alheios
Ou beijar lábios secos de saudade?
Quem quer ouvir histórias de permeio,
Contando como é triste esta ansiedade?

Quem poderia querer-me assim,
Quando pertenço, triste, a meu passado,
E tudo o que há de bonito em mim
S’ encontra no meu coração quebrado?

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Alma de Fénix

Encontraste-me e eu já não tinha coração. Um anjo tinha-mo arrancado do peito e, mesmo tendo-o apanhado do chão, caco a caco, a verdade é que quando me encontraste, eu já o tinha oferecido a alguém… para sempre.
Então, fingiste que podia amar-te com a alma. Com a alma que eu já tinha oferecido ao diabo em troca de uma morte que não chegou. Mas entraste nos meus olhos e abraçaste-me a alma inexistente. Abraçaste-a com a força de mil homens e a suavidade de um sussurro.
Caminhei ao teu lado, sempre para descobrir que nenhum medo do mundo me faria cair enquanto ali estivesses. Havia uma mão tua segurando cada passo incerto que dava na direcção do meu inferno terreno.
Chorei lágrimas de sangue. Eram invisíveis mas, de alguma forma, acredito que as viste a jorrar dos meus olhos secos e que me limpaste o rosto, com mais fé em mim do que aquela que eu podia merecer.
Sentaste-te comigo a ver o mar e aprendeste a amar o horizonte. Porque sabias que ele era meu. Sabias que aquela linha impossível de alcançar era tudo o que eu sentia. Tudo o que eu desejava. De alguma forma, não te importaste com os meus sonhos inumanos.
Em vez disso, calaste-te durante horas para ouvires o murmúrio triste do meu peito a sagrar. Ouviste a mesma história vez após vez, como se fosse um conto de fadas e não uma jornada pelas minhas próprias trevas.
Encontraste-me e deste-me a mão. Em algum momento, também entraste no lugar vazio onde era suposto eu ter um coração. E, sim, eu preocupo-me contigo e gosto de ti. Só que tu encontraste-me e eu nunca me encontrei…

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O estranho

O estranho atravessou a rua. Tinha um olhar vazio como o céu numa noite sem lua e os lábios mantinham uma linha severa que recusava um sorriso a todos aqueles com quem se cruzava.
Ergui o olhar para ele e fiquei a vê-lo atravessar. De alguma forma, os seus passos decididos condiziam com o olhar. Era como se não fosse mais do que um corpo sem alma, deambulando pelas ruas, correndo contra o tempo em busca de algo que jamais podia encontrar.
Senti o meu corpo reagir e movi-me com estranheza quando me apercebi que ele vinha na minha direcção. Havia algo de familiar naqueles olhos, naquele modo de andar, naquela eterna sensação de pressa. Mas era como se o tempo tivesse apagado a minha memória. Como se tivesse passado muito, muito tempo e já nada fizesse sentido.
Quando chegou ao pé de mim e se sentou à minha frente, sem pedir licença, notei que era bonito. Bonito demais para só o notasse agora. E assustava-me o modo como olhava para mim, como se eu não estivesse ali e aquilo fosse apenas um engano.
Estendeu a mão e tocou-me no rosto. Tentei recuar mas, por algum motivo, por mais que quisesse fazê-lo, não conseguia. Era como se aquele estranho fizesse parte do que eu sempre tinha sido.
Então, fechei os olhos e permiti que toda a paz e toda a alegria do mundo me assombrassem, deixei que aquele toque me fizesse sonhar com um futuro que não estava certa que pudesse existir.
Abri os olhos e notei que o olhar do estranho continuava vazio. Vazio como estava quando atravessou a estrada, quase a correr. Não havia alma naqueles olhos. Nem brilho. Nem coisa alguma. Simplesmente o vazio. …
O estranho levantou-se e virou costas, para partir. Travei-o. Precisava de saber o seu nome. Ele olhou para mim e encolheu os ombros, como se me tivesse ouvido fazer aquela pergunta em voz alta.
- No momento em que desaparecer, saberás a resposta… - murmurou. E depois correu. Correu tão depressa que, num segundo, não pude avistá-lo. Mas, de uma forma incompreensível, ficou comigo para sempre. E, todos os dias, quando olho ao espelho, vejo os seus olhos nos meus olhos. Não há alma, ou alegria, ou coisa alguma… Mais uma vez, só o vazio…
Conto a todos a mesma história! Um estranho atravessou a rua e tocou-me no rosto, deixou-me sonhar. Depois, virou costas e abandonou-me na maior solidão. Só quando partiu é que eu soube que ele era o amor… Era o amor a atravessar a rua e a tocar-me no rosto, a deixar-me sonhar e a mostrar-me que a distância não é o suficiente para apagar a imagem de um estranho.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 23 de janeiro de 2010

Perder


Ponderei que tudo o que temos neste mundo vem das coisas que perdemos.
Perdemos as ilusões a ponto de nos tornarmos humanos e sonhamos até perdermos a vida.
Perdemos oportunidades e lançamos dados sobre a mesa, dispostos a perder a dignidade.
Perdemos o medo e o pudor. Damos o corpo e a vida. Amamos e perdemos o medo de caminhar de mãos dadas pelas ruas.
Aprendemos a ripostar e perdemos amigos, perdemos lutas, perdemos o equilíbrio. E temos nas mãos um amor tão instável que se perde em nós, no medo de o virmos a perder.
Perdemos a noção das horas enquanto nos perdemos uns nos outros. Ou em conversas perdidas em emaranhados labirínticos de emoções.
Perdemos empregos. Perdemos amantes. Perdemos amores. Perdemos a vida. Perdemos a alegria de acordar de manhã e perdemos as lágrimas.
Perdemos o mundo. Perdemos o corpo. Perdemos a alma e perdemos a fé.
A ironia é que perdemos algo todos os dias da nossa vida - perdemos tudo até não restar mais do que poeira - e usamos o mesmo verbo que usaríamos para dizer que não sabemos onde estão as chaves de casa...

Marina Ferraz

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Palavras


“Eu amo-te, não só pelo que és, mas pelo que eu sou quando estou ao teu lado.” Roy Croft

Falei. E em todas as palavras que disse, encontrei o mesmo vazio sem sabor. O mesmo desejo incoerente de que a tua voz se cruzasse com a minha ou a de que os teus lábios me silenciassem.
Imaginei, por um segundo, que me envolvias no calor de um abraço e que me sussurravas ao ouvido palavras proibidas pelo tempo e pela vida. E eu sorria. Inocente, incoerente… sorria porque eu saberia, com toda a certeza, que tinhas razão. Dissesses o que dissesses. Terias sempre razão.
Os teus olhos de sol viriam iluminar a minha vida e, a seu tempo, sei que aprenderia a viver longe das trevas. Nas palavras. Na luz. Nas tuas palavras e na tua luz.
Falei. Tinha esperança de que pudéssemos construir um castelo sobre as nuvens e reinar sobre uma imensidão de estrelas rebeldes. Ou talvez pudéssemos simplesmente deitar-nos acima do nevoeiro e olhar para o céu estrelado como se fosse a maior maravilha do mundo.
Palavras. Palavras que não ouviste. Mas o que importa? Descobri que amo cada traço teu, mesmo quando não ouves os meus desejos. Há uma beleza inexplicável no teu rosto de marfim quando estás comigo e o teu pensamento não está. Imagino que também estás a sonhar. A sonhar, talvez, com todas as palavras que me disseste e com todas as que me dirás um dia, se o mundo não nos separar para sempre.
Falei. E a resposta que ecoou pelo céu dos meus desejos foi somente o silêncio. Mas, ainda assim, os meus lábios curvaram-se num sorriso ténue. Amo tudo em ti. Até a pessoa que me fazes ser. Esta pessoa que ama a tua presença e se satisfaz com as estrelas. Esta pessoa que, para estar bem, só precisa de saber que existes. Esta pessoa que sabe que um dia não vais estar mas que acredita que, contigo, poderia ser muito mais feliz.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet