quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Cansaço

Move-me o meu cansaço. O meu mundo de olhos abertos que não vêem e de pensamento vivo que não remói. O meu mundo de cores indefinidas em marés de tempestades de sol.
Move-me o meu cansaço. Este cansaço que não me mata e não me fortalece. Que me move apenas, com promessas de sonos eternos, livres de sonhos, de pensamentos, de racionalidade.
Imagino que me vou deitar e não me levanto amanhã. E que amanhã é para sempre. Imagino que é essa a meta desta vontade de enfrentar a fadiga e erguer os braços. De lutar.
Move-me o meu cansaço. A sensação de eternidade ausente. Como se pudesse entrar um exército pela porta dos meus olhos, derrubar tudo o que me importa e eu não quisesse saber.
Sinto o corpo pesado e a alma acorrentada ao corpo. Sinto que se dormir agora e não acordar nunca mais, o sossego será tudo o que preciso para estar completa.
Há um som de eternidade muda a ecoar nos meus ouvidos. A promessa inaudível do amanhã que não vai chegar.
Move-me o meu cansaço. O cansaço que respiro e que me alimenta. O cansaço que me mata o frio e a sede.
Move-me o cansaço que entrou em mim e se apropriou de cada célula do meu corpo. Não sei quem era ontem. Ontem foi há mil anos atrás. Hoje, eu sei que sou cansaço. É o cansaço que me move.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Aniversário

Abro hoje os olhos. Hoje, porque hoje sopro as velas. Sopro-as porque faz anos que se apagou o sol e, hoje, não quero qualquer tipo de luz a cegar-me.
Hoje sopro as velas e peço um desejo mudo que repito três vezes. Três. Não mais e não menos. Fico a ver o fumo do meu pensamento triste a envolver-se no fumo da vela apagada, dançando no ar, rumo ao esquecimento.
Sopro as velas. Olhar ausente, vazio. O olhar de quem já não espera coisa alguma. Como se o mundo fosse uma floresta de ciprestes secos e nela fosse sempre noite. Uma noite onde os pássaros já não podem voar.
É essa a minha idade. Eternamente.
Sopro as velas num sopro sem ar. O sopro da saudade misturado no da distância. Um sopro de contentamento, velado pela dor.
Aplaudem. Todos os meus fantasmas. E sorriem-me. Sorriem-me no meu aniversário, assim que sopro as velas e me deixo cair novamente na minha poltrona de sofrimento.
Sopro as velas no aniversário da minha morte. Os fantasmas deixam-me só por momentos. O relógio bate as eternas badaladas e eu fecho os olhos.
Parabéns.

Marina Ferraz

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Mural do Silêncio


Bateram palmas. Infinitamente. Sentia a pele queimar sob as luzes. Os meus olhos não podiam ver o rosto de ninguém. Bateram palmas ao segundo acto da minha farsa. Ainda tinha de voltar a palco e já estava farta de fingir. Estava farta de tentar procurar um sentido naquela peça de teatro constante à qual chamo vida.
Subi ao palco da minha morte vestida de vergonha. Suja de solidão. Rasgada de saudade. Bateram-me palmas e eu sorri. Sorri porque era o meu papel e porque havia uma nota no guião dizendo que o fizesse. A felicidade era da vida que representava e não da morte que vivia.
Continuei a dizer as minhas deixas. Cuidadosamente, sem falhar nenhuma, tendo em conta o tempo que passava no compasso do meu coração parado.
Ouvi as respirações sustidas e namorei o silêncio que as acompanhava. O silêncio era casa. O silêncio era abrigo. O silêncio era seguro. O silêncio preenchia-me como mais nada poderia fazer.
Bateram palmas. Não porque o meu papel fosse bom mas simplesmente porque eu era muito melhor actriz do que pessoa.
Agarrei no revólver e disse duas frases engraçadas antes de o disparar contra a minha cabeça e cair. O público riu e levantou-se para aplaudir o grande final. Eu já não estava a representar. Acabara a peça e a vida. Restava a morte. Só a morte. E eu estava finalmente em paz. Bateram palmas. Infinitamente. E eu nunca mais representei. Não se pode fingir a vida por muito tempo quando nunca se soube viver.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da  Internet